Habitação sobrelotada: viver sem espaço para viver

Há perto de um milhão de pessoas em habitações sobrelotadas. Helena gere um T3 com três agregados e 12 pessoas. Maria vai emigrar porque cedeu um quarto e a renda duplicou. E Francisca ocupou uma casa

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Em 2021, segundo o estudo 'Portugal, Balaço Social 2022', 18,8% das famílias pobres viviam em alojamentos sobrelotados. Cátia Mendonça
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Aos 56 anos, Helena consegue gerir uma casa que se assemelha a uma pequena pensão literalmente familiar. São 12 pessoas, três agregados, refeições que implicam a logística de uma unidade hoteleira e, sobretudo, as contas para haver comida para todos, o mês todo. Por semana, gasta um saco de batatas de 30 quilos, por exemplo. Há seis menores de 10 anos, há dois casais, mas só há três quartos e uma casa de banho. “Há muitas casas fechadas, muitas casas fechadas [aqui no bairro], mas, mesmo oferecendo-nos para compor as que estão desmanchadas, estamos há anos à espera”, desabafa a matriarca que vive com o marido, três filhos, uma nora e seis netos.

Entre a Grande Lisboa e o Grande Porto, foi difícil encontrar quem pudesse expor as situações de sobrelotação. Uma situação alarmante nas estatísticas: o relatório Portugal, Balanço Social 2022 (dados de 2020) regista que uma em cada cinco famílias pobres (18,8%) vivia em menos espaço do que é preciso para uma habitação digna. No geral, há cerca de um milhão de cidadãos nesta situação (ainda assim, uma redução de cerca de 140 mil, face a 2021), segundo o Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (ICOR) do Instituto Nacional de Estatística.

As principais barreiras para se exporem são, além da óbvia vergonha social, o medo de represálias – de despejos, de aumento das rendas ou de recusa de serviços do Estado. Vários dos voluntários e técnicos que trabalham no terreno para resolver problemas de habitação, eles próprios, mostraram-se relutantes em identificar-se, somente porque isso ia dar pistas para que determinadas entidades públicas identificassem os casos descritos na reportagem. Por causa das represálias que criam um ambiente de medo acrescido, agora que, como diz um deles, “rebentou de vez o problema da habitação e da sobrelotação das casas”.

Após dezenas de telefonemas, de respostas temerosas de que todo o trabalho de campo pudesse sofrer ainda mais contrariedades, chegaram-se à frente três mulheres, três mães, duas delas avós também. Todas elas habitam em bairros da Grande Lisboa e do Grande Porto, todas elas dizem que há casas vagas, abandonadas, em redor do sítio onde vivem.

Só uma aceitou ser identificada pelo seu nome próprio: Helena. É esta mulher de 58 anos que gere a tal pequena “pensão” com 12 familiares directos. Nasceu e viveu junto ao Douro e, há cerca de duas décadas, mudou-se com os cinco filhos para a Grande Lisboa, para poder estar perto do marido, que esteve preso em Sintra.

Helena trabalhou em limpezas, mas ganhava 100 euros e pagava mais de 200 em renda. Andou “às esmolas”, conseguiu acesso a transferências sociais, desesperou até conseguir uma habitação social camarária.

Mil euros para 12

Helena e o marido estiveram separados 22 anos, enquanto ele cumpria pena de prisão em Sintra. Através de uma cunhada, rumou ao Sul com os cinco filhos – a mais velha, emigrada na Alemanha, tem 33 anos, o mais novo, 18. Há 19 anos, foi-lhe atribuída uma casa num bairro camarário, pela qual paga cinco euros de renda. O grosso do rendimento da família vem do salário mínimo do marido, que trabalha num parque florestal de Sintra. “Se vivermos com mil euros, é muito...”, calcula Helena.

Para esta conta entram os abonos de cinco netos, fruto da relação de um dos filhos mais velhos com a actual companheira e que recebe rendimento de inserção social. Se no primeiro quarto dormem Helena e o marido e o neto mais velho, de cinco anos, da prole do filho, este e a mulher dormem num colchão no chão com o bebé, para abrir espaço para o beliche que acolhe os outros três filhos, de quatro, três e dois anos. Um filho mais velho dele, de uma relação anterior, vai-se encaixando onde pode quando vem da casa da mãe para estar com o pai.

O terceiro quarto é dividido por dois outros filhos de Helena, sendo que um deles, que “anda aos biscates”, vai alternando a residência aqui e em casa da namorada, consoante os trabalhos intermitentes que vai conseguindo. “Não temos privacidade, estamos fartos de pedir à câmara. Já aqui estiveram assistentes sociais e dizem que não há casas. Aqui [no bairro], há muitas casas fechadas, muitas casas fechadas”, conta a matriarca da família.

“O meu filho está inscrito para habitação social há muitos anos. Manda emails. Ele já trabalhou nas obras e disse que compunha e ajeitava uma das casas abandonadas para viver com a mulher e os filhos, mas as técnicas dizem que não, que não pode ser. É uma situação um bocado triste, porque não tenho condições, nem tenho privacidade”, continua Helena, tocando noutro ponto: “Eu e o meu marido estivemos sem vida conjugal 22 anos e temos de dormir com o nosso neto no quarto.”

“A minha vida foi muito difícil. Sou do Norte, mas tive um pequeno percalço e o meu marido foi detido. Pagava 200 e tal euros de renda e ganhava 100 euros. Vivi aqui muito tempo à esmola. Depois comecei a trabalhar nas limpezas. Depois, deram-me o rendimento mínimo e fazia umas horas, mas era pouco dinheiro para pagar alimentação e contas. Fui trabalhar para um hotel, ganhava um bocadinho mais, e tiraram-me o rendimento, mas vivia do meu trabalho e criei os meus filhos todos sozinha”, conta.

“Pedi à câmara uma casa e finalmente deram-ma. Tem três quartos, uma sala, uma cozinha e a casa de banho. E uma pequena despensa. É uma casa muito pequena para tanta gente”, assinala. “Hoje, vivo com dificuldades, tenho para o meu pãozinho do dia-a-dia, não passo fome”, faz questão de sublinhar.

“O meu filho, às vezes, nem tem vontade é de viver, está sempre a dizer, ‘Se eu tivesse uma casa...’”, acrescenta.

Quanto à alimentação da enorme família, Helena orgulha-se de gestão escrupulosa do orçamento. “Não comemos só batatas!...”, atira. Com a nora, vai preparando as refeições para um pequeno regimento. “Comemos todos juntos, a não ser que alguém não esteja. Tenho uma mesa muito grande. E é sempre uma panela muito grande”, diz.

“Mas nem o Banco Alimentar nos dão. Não é que passemos fome, mas podia comer uma coisinha melhor. Penso: ‘Se comer hoje uma coisa melhor, amanhã não comemos...’ Tenho de fazer muita ginástica”, explica. E fala de uma pequena, mas muito valiosa, ajuda para a alimentação da família. “Deram-me uma hortazinha no bairro, vou tendo uma folhinha de hortaliça, um tomate, uma alfacezinha, couves, batatas. A horta deu-me três caixinhas, que chegou para a semana. Para ter ideia, gasto um saco de batatas de 30 quilos por semana”, pontua.

E conclui: “Só condeno terem tantas casas fechadas e não darem essas casas. Porquê? Há muita gente aqui a precisar de casas. Com um filho ou dois a viver com as famílias na casa dos sogros, na casa dos pais.”

Do sótão a “okupas”

Num bairro social de um concelho do Grande Porto, também fazem eco as queixas contra as casas desocupadas perante tantas famílias a viver em sobrelotação. Francisca (nome fictício), de 32 anos, anda com o marido e os dois filhos há vários anos de armas e bagagens entre um sótão, um espaço muito pequeno em casa dos pais ou dos sogros e a ocupação de um T4 sem o consentimento do Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU).

“Casei, juntei-me com o meu marido e fui viver para casa da minha mãe, que tem três quartos, mas num deles vive o meu irmão com a companheira. Tive o meu filho e ele esteve a dormir no chão. Nos meus sogros, não resultava, dávamo-nos mal e vive outro casal lá, a irmã do meu homem com o marido dela e uma filha”, explica Francisca, actualmente desempregada.

A necessidade de habitação, além da dignidade, consome muito tempo e recursos, de que a população mais pobre não dispõe. É neste processo que anda este casal, entre pedidos de casa a autarquias e instituições que gerem a habitação social para o Estado. “Estava há cinco anos com o meu companheiro e abaixo da minha mãe estava uma casa desocupada, a filha da senhora que já não vivia lá estava num apartamento com o namorado e há cinco anos que não a víamos”, começa por contar sobre a ocupação do fogo no bairro onde sempre viveu desde que nasceu.

Entre despejos da casa ocupada sem consentimento do IHRU, pelas autoridades, regressos às casas dos pais de ambos, foi voltando a um local que, com o tempo, conseguiu renovar para ter condições de ali criar os filhos. “Foi uma técnica que me disse para ocupar a casa, que depois se conseguia legalizar a situação. Estou inscrita para habitação social, não quero nada de graça, quero pôr a luz, a água, tudo a pagar”, explica.

Este processo leva tempo. Começou, ainda estava grávida da filha, que hoje já tem dois anos. “Fiz umas obras na casa, que parecia abandonada. Tem quatro quartos, mas sem camas nem nada. Era só tralhas e lixo, tive de fazer obras em tudo. Pus chão, refiz a casa de banho, que parecia um filme de terror. Não ia criar os meus filhos naquelas condições”, desabafa.

“Um dia destes, aparece-me aqui o tribunal e a polícia para me despejarem”, prevê, sublinhando que “há muita gente à espera de casa”. Francisca vive sobrecarregada pelos empréstimos que teve de obter para equipar minimamente a casa (num dos despejos, teve de vender quase tudo) e numa advogada para a ajudar a legalizar a situação.

“Voltei [a ocupar a casa] há dois meses, com medo de que aconteça tudo de novo. Com a Segurança Social, nem vale a pena tentar. Tenho uma filha com dois anos, o meu filho tem sete. Estou com o meu companheiro há oito anos, é muito tempo à espera de uma casa e não dão casas a ninguém, arrancam as portas da rua e põem tijolos”, termina.

Abandonar o barco

De novo num concelho da Grande Lisboa. Maria (nome fictício) prepara-se para entregar o T2 no bairro onde passou toda a vida. Aos 50 anos, prepara-se para emigrar, depois de há um ano ter cedido um dos quartos para que uma senhora mais velha e o filho evitassem o perigo de viver na rua.

“Estou a pagar uma renda de 325 euros, o contrato acaba em Novembro e vou já entregar a casa. No outro quarto, vive uma senhora, que também é reformada, com o filho”, diz Maria, que ainda faz “umas horas” para juntar à sua pensão de invalidez de “300 e poucos euros” e ao salário mínimo do marido.

“O senhorio está a pedir 700 euros de renda, três meses de caução e fiador, eu não tenho nem dinheiro, nem tenho fiador”, conta. “O meu marido já se despediu do trabalho, vamos embora de Portugal”, diz, consentindo: “Triste não estou, mas contente também não.”

A solução, enquanto o marido trata dos últimos detalhes para emigrar, é ir uns tempos para casa da filha, onde deixará os seus pertences quando abandonar o país. Entretanto, preocupa-a a senhora e o filho, de cerca de 25 anos, que não têm para onde ir já a partir do final do mês.

“A situação está a ser seguida por alguns técnicos de IPSS, mas é difícil de resolver. Estou preocupada com a senhora. É reformada, não sei se tem ajudas alimentares”, explica.

O que sabe é que a situação é insustentável, porque a casa tem áreas muito pequenas, uma única casa de banho e os dois agregados fazem vidas separadas, como refeições em horários diferentes. “Temos pouco espaço e ir à casa de banho é um problema”, confessa.

Além disso, o aumento para mais do dobro da renda deixa-a, a ela e ao marido, mas também ao agregado do outro quarto, em apuros. “Depois, a gente nem come, nem bebe, nem vive. Vamos abandonar o barco”, diz Maria, que se assume angustiada. “Temos de arranjar um quarto o mais depressa possível para a senhora e o filho”, conclui.


A pobreza na infância e nos mais velhos, as privações materiais e sociais, as diferenças regionais e os desafios do custo de vida. Nesta série editorial, o PÚBLICO faz um “raio X” ao impacto da pandemia de covid-19 em Portugal, promovido pela Fundação ‘la Caixa’, do BPI e da Nova SBE, promotores do estudo Portugal, Balanço Social 2022, publicado em 2023.

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