Fecharam a “segunda Casa da Música do Porto”: “É matar a cultura”
Câmara do Porto mandou selar 105 das 126 salas do centro comercial onde cerca de 500 músicos têm sala de ensaio. Artistas e lojistas prometem lutar. Ornatos Violeta são uma das bandas “desalojadas”.
As portas do centro comercial Stop não vão, para já, fechar. Mas a maioria das fracções foi selada na manhã desta terça-feira, por ordem da Câmara do Porto. “Esvaziou-se a alma” do Stop, a quem muitos chamam a “segunda Casa da Música do Porto”, e isso é uma forma de “matar” o projecto que é casa para cerca de 500 músicos da cidade. O lamento é de Miguel Sousa, ao lado de colunas de sons e alguns instrumentos que decidiu retirar da sala onde ensaia desde 2020. O músico teve a “lotaria” de não ver o seu espaço selado, mas com concerto agendado já para este sábado, e perante as incertezas do porvir, decidiu levar o material essencial. Sobram 21 salas abertas no Stop. Mas sobreviverão num centro quase fantasma? E que futuro existe para os músicos do Porto?
As perguntas dominaram as conversas ao longo de todo o dia. Ao desânimo e emoção juntaram-se revolta e palavras de ordem, acompanhadas por inúmeros cartazes. “Morto.”, lia-se num dos mais icónicos, copiando o design do município gerido por Rui Moreira.
Às 18 horas, uma manifestação foi ganhando forma e algumas centenas de pessoas juntaram-se, cortando o trânsito da Rua do Heroísmo, onde se cantava "o Porto não está morto" e se iam improvisando discursos sobre o despejo. Rui Moreira foi o principal visado das críticas.
"A situação é grave", admitiu Rui Guerra, da Associação de Músicos do Stop. O representante exigiu respostas do município e apelou aos músicos para não retirarem os seus bens das salas. Mariana Costa, da associação Alma, lamentou também a ausência de respostas da autarquia. "Não nos podem ignorar", apontou um músico de megafone na mão. Na próxima segunda-feira às 14 horas haverá nova manifestação, desta vez em frente aos Paços do Concelho.
"A sede da Remax"
Entre os “despejados” do Stop estão os Ornatos Violeta. A banda portuense tem usado uma das salas para preparar os concertos desta temporada – vai estar em Oeiras e Vilar de Mouros já em Agosto – e tem todo o material ali guardado. O futuro é para já uma incógnita, diz Pedro Santos, baterista dos Ornatos conhecido como Kinorm, à porta do centro comercial. O fim deste projecto é “um problema gigante” para centenas de músicos e representa “uma amputação na capacidade de trabalho”. Na cidade, sublinha, “não há alternativas” ao Stop: “Se isto existisse em Nova Iorque era incrível, mas no Porto parece que somos os parentes pobres.”
Nas redes sociais, a rapper Capicua foi incisiva. “O Porto podia ser uma cidade incrível. Tem massa crítica, carisma, artistas incansáveis e uma beleza ímpar. O problema é que escolhe sempre uns tecnocratas provincianos como autarcas. Era uma cidade. Hoje é a sede da Remax”, escreveu no Instagram.
A “jogada de mestre” da autarquia, que faz os músicos retirarem os seus bens à pressa e deixarem de pagar a renda, desfaz vínculos e abre caminho para “fechar o Stop de vez”, lamenta a música portuense.
Pedro Abrunhosa escreve no PÚBLICO que está em causa o tipo de cidade que queremos construir. E Lucas Argel diz que o Porto tratou uma das suas maiores jóias culturais com o desprezo dos bárbaros.
Ao longo do dia, dezenas de músicos foram retirando os seus bens das salas de ensaio. Depois de o portão verde estar encerrado durante cerca de duas horas e meia, Leitão da Silva, comandante da Polícia Municipal do Porto, mandou abrir e fez um pequeno comunicado aos músicos e lojistas. Até ao final do dia, quem tivesse o seu espaço selado podia, se quisesse, levantar os seus bens, desde que acompanhado por um agente de autoridade. Nos dias seguintes teria de o fazer mediante um agendamento na Câmara do Porto, como constava no aviso colado nas portas das salas fechadas.
Nenhum dos músicos com quem o PÚBLICO falou foi previamente avisado desta acção pelos seus senhorios, que dizem também não ter sido notificados.
Quando a Polícia Municipal começou a selar os espaços, por volta das 10 da manhã, Rui Moreira preparava-se para apresentar o seu projecto de abrandamento da velocidade em ruas do centro histórico. Os jornalistas tinham sido convocados para uma conferência de imprensa no Largo Amor de Perdição, mas o gabinete de comunicação já tinha preparado o comunicado sobre o Stop para enviar às redacções. Quando o fez, perto do meio-dia, já o autarca estava a salvo das perguntas dos repórteres.
A autarquia escrevia no comunicado que o encerramento de 105 das 126 lojas acontecia “por falta de licenças de utilização para funcionamento”. “Este é um processo que se arrasta há mais de dez anos, tendo o município vindo, ao longo do tempo, a acumular queixas por parte da vizinhança.”
Rui Moreira escapou a perguntas, mas não a críticas. Na Rua do Heroísmo, houve até quem se lembrasse de deixar uma, em cartaz amarelo, usando palavras do seu ex-vereador da Cultura, Paulo Cunha e Silva, que em 2105 classificou o Stop como “um dos ecossistemas culturais mais interessantes [da cidade]”. “Não ao Stop do Stop”, “estão a matar a cultura” ou “especulação dissimulada” eram outras das palavras de ordem afixadas à entrada do histórico espaço.
"Fiquei sem o meu emprego"
Nils Meisel nota uma triste ironia. A sua banda, Sereias, recebeu recentemente um apoio do município para se internacionalizar. E, agora, vê o mesmo município retirar-lhe o espaço de ensaio, hipotecando o futuro. “Estou aqui há mais de dez anos. Somos profissionais, precários mas profissionais. É matar a cultura”, diz.
No mesmo dilema está José Gomes. Sem qualquer aviso, o músico ficou sem a sua sala. Ou, por outras palavras, sem forma de sobrevivência: “Fiquei sem o meu emprego. É isso que está em causa para muitos de nós.” No Porto, diz, repetindo as queixas unânimes entre os artistas, não há salas para ensaiar para toda aquela gente. E as poucas que há são a preços inacessíveis.
Também alguns lojistas do exterior do centro comercial foram afectados por esta acção. Natália Trindade não escondia a emoção, ao lado de uma marquesa e boiões de cera que conseguiu “salvar” da sua perfumaria antes de a polícia a encerrar. “É o meu ganha-pão, fico sem nada”, desabafou.
BE e CDU solidários
A deputada municipal do Bloco de Esquerda Susana Constante Pereira esteve no local o dia todo, mostrando a sua solidariedade com os artistas. Ao fim da tarde, também o vereador Sérgio Aires esteve no Stop. Para a bloquista, a acção do executivo de Moreira é incompreensível, numa altura em que parecia haver diálogo entre o município e os representantes dos músicos. “Lembra Rui Rio nos tempos do Rivoli. É uma visão da cidade em que tudo tem de ser programado pelo executivo e não se permitem iniciativas orgânicas.”
Rita Duarte, eleita da CDU na junta de freguesia do Bonfim, sublinha a importância do Stop para a cidade: “Não há outra estrutura destas na cidade. Há espaços aqui e acolá e os preços sofrem de uma brutal especulação imobiliária não compatível com os rendimentos desta gente.” Em comunicado a CDU Porto considerou "inaceitável" a acção de Rui Moreira, "nas costas de todos".
Para Mariana Costa os argumentos da autarquia não batem certo. Até porque mudam ao longo do tempo. Se a questão da segurança era a mais relevante há muito pouco tempo, agora alega-se o incómodo provocado aos vizinhos. "Não há transparência neste processo", acusa a representante de uma das associações de músicos. O interesse imobiliário do espaço era comentado entre vários dos artistas e lojistas.
O administrador do condomínio do edifício, Ferreira da Silva, lamentou o desfecho do caso numa altura em que havia diálogo, embora admita a “legitimidade” da autarquia para fechar as salas. O próprio edifício não tem licenças, disse aos jornalistas, mas a sua relevância cultural permitiu arrastar a situação durante anos. Enquanto falava à comunicação social, Ferreira da Silva foi vaiado por vários artistas, que o acusavam de conivência com a autarquia. Sem reagir e admitindo um problema de difícil resolução, o administrador do espaço rematou com uma hipótese de futuro: “Se calhar vamos ser outro Dallas.”