Não é admissível mergulhar em água fria uma criança que faz birras
Neste caso poucas dúvidas existirão de que estaremos perante uma conduta francamente inapropriada e que poderá constituir crime.
“A fronteira entre o que possa ser um castigo apropriado à luz do poder-dever de educar os filhos que impende sobre os pais e uma conduta inapropriada, porventura criminosa, poderá não ser completamente nítida.”
Uma influencer publicou um vídeo nas redes sociais em que se vangloria por ter encontrado um método infalível para acabar com as birras da filha, com 3 anos de idade: mergulhá-la em água fria (!). Segundo afirma, já o fez numa piscina e também a meio da noite, na banheira, com a criança de pijama.
A ser verdadeiro, o que diz a senhora, é de temer pelo bem-estar da filha. É que, não só a criança foi sujeita várias vezes a um tratamento violento grave, como parece não estar em causa um ato irrefletido e impulsivo, mas sim uma conduta premeditada e repetida.
Também não parece existir consciência da gravidade deste comportamento, já que a mãe o divulga nas redes sociais e até se vangloria dos resultados obtidos, sublinhando que foi “remédio santo” para acabar com a birra… Ou seja, estamos perante uma prática punitiva e maltratante que parece ser entendida como adequada, o que apenas agrava a situação de perigo em que, aparentemente, se encontra esta menina.
Se nem sempre é fácil distinguir entre práticas parentais que poderão constituir castigos “normais” e admissíveis, daqueles que devem ser considerados abusivos, neste caso poucas dúvidas existirão de que estaremos perante uma conduta francamente inapropriada e que poderá constituir crime.
Porém, nem sempre as situações serão assim tão claras. Uma palmada ou bofetada, aplicadas pontualmente e com força moderada, serão hoje comportamentos admissíveis e com cobertura legal?
A fronteira entre o que possa ser um castigo apropriado à luz do poder-dever de educar os filhos que impende sobre os pais e uma conduta inapropriada, porventura criminosa, poderá não ser completamente nítida.
O nosso Código Civil previa expressamente a possibilidade de os pais poderem corrigir moderadamente as faltas dos filhos. Dizia o artigo 1884.º que: "Compete a ambos os pais o poder de corrigir moderadamente o filho nas suas faltas." Esta norma veio, todavia, a ser eliminada com a reforma de 1977. Por outro lado, os compromissos internacionais assumidos pelo Estado português parecem conduzir-nos no sentido da abolição dos castigos corporais.
Di-lo expressamente o Conselho da Europa: "Os países membros têm a obrigação imperiosa de reformar a sua legislação e de tomar medidas educativas entre outras medidas para proibir e eliminar todos os castigos corporais infligidos às crianças, incluindo em casa pela sua família." E também a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças, que lhes garante o direito a serem protegidas relativamente a todas as formas de violência física ou mental (art. 19.º).
A verdade, todavia, é que alguns tribunais e literatura jurídica continuam a admitir, nalgumas circunstâncias, a sua legalidade. Noutros tribunais, pelo contrário, a absoluta proibição dos castigos corporais é proclamada incondicionalmente.
O tratamento jurídico da questão dos castigos corporais aplicados a crianças pelos seus pais não é, pois, matéria definitivamente resolvida entre nós, podendo ainda ser encontradas decisões dos nossos tribunais em sentidos diversos. Em qualquer caso, parece verificar-se uma tendência crescente para considerar ilícita qualquer forma de violência exercida por um pai ou mãe sobre uma criança.
Neste contexto, os comportamentos violentos dos pais sobre as crianças poderão configurar a prática de um crime de maus tratos (artigo 152.º-A do Código Penal), que deverão ser denunciados às autoridades policiais, ao Ministério Público ou às Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJs) por qualquer pessoa que deles tenha conhecimento, seja diretamente, seja pelas redes sociais ou por qualquer outro meio.
Sempre que se constate a existência de uma criança em perigo, designadamente por ser vítima de maus tratos às mãos dos progenitores, o Ministério Público, além da perseguição penal dos agressores, deverá desencadear um processo de promoção e proteção junto do tribunal (de família e menores) a fim de remover ou afastar tal perigo. E é isso que se espera que venha a suceder no caso da pequena J., a quem a mãe sujeita a estes mergulhos em água fria.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990