Ana Maria Machado: “Enquanto for viva, sou dona do meu texto”

Tem 81 anos e foi a primeira escritora de livros para crianças e jovens a integrar a Academia Brasileira de Letras. Esteve na Gulbenkian a propósito da edição em Portugal de Bisa Bia, Bisa Bel.

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Aos 81 anos, a escritora brasileira Ana Maria Machado continua a publicar Nuno Ferreira Santos
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A escritora brasileira Ana Maria Machado, prémio Hans Christian Andersen em 2000, fez por estes dias escala em Lisboa, depois de ter sido convidada para um encontro de artistas em Itália com o Papa Francisco. “Éramos só cinco brasileiros, eu a única mulher”, disse orgulhosa ao PÚBLICO, antes de rumar à Fundação Calouste Gulbenkian, onde Sara Figueiredo Costa iria apresentar Bisa Bia, Bisa Bel, que data de 1981, mas foi editado recentemente em Portugal pela Tinta-da-China, na colecção Pererê, distribuída também pelo PÚBLICO.

À luz da corrente actual dos leitores sensíveis e da escrita politicamente correcta, conta que as editoras já lhe pediram que substituísse, num livro escrito lá atrás no tempo, “uma menina índia” por “uma menina de um povo originário”. Isto para que não usasse a palavra “índia”. Não aceitou. Até porque “isso vinha na boca de uma criança” e “‘povo originário’ não faz parte do vocabulário infantil”. A editora concordou.

Outro pedido: “Um menino estava pensando num problema enquanto tomava um banho prolongado. Perguntaram-me se podia tirar o adjectivo ‘prolongado’ porque é ruim para o planeta.” Ana Maria Machado disse-lhes que tirava o livro daquela editora: “Ela também era ruim para mim.” Ficou tudo como estava.

“Enquanto for viva, sou dona do meu texto.” E quando morrer? “Confio nos meus filhos. Eles vão ver o que é que é.” São três: um vive no Brasil, outro em Portugal e outra nos EUA. “Acho que são coisas de princípios, mas se houver algum momento em que estou ofendendo alguém, bem…” Aqui, remete-nos para um artigo que escreveu na revista Piaui, sob o título “Os riscos de corrigir os livros clássicos infanto-juvenis”.

À pergunta sobre se faz sentido publicar este livro, Bisa Bia, Bisa Bel, agora, tantos anos depois, a autora responde: “Sim, faz. Ele nunca deixou de ser publicado, não sei quantas edições tem no Brasil. Nunca esteve fora de catálogo, sempre foi lido nas escolas. É intemporal.”

Pode portanto ser lido agora, como daqui a dez anos e como foi lido há dez. Pedimos um resumo: “Ele trata de gerações diferentes de mulheres, da mudança do mundo, das permanências das pessoas dentro dessas mudanças, do papel da mulher. Trata de uma coisa que na ocasião era presente e hoje é histórico, a questão do exílio no Brasil. É um tema que pode ser histórico hoje, mas é permanente noutras regiões, noutros lugares. Esse estar fora, não perder as raízes estando fora. Basicamente, trata das mudanças do papel da mulher nas diferentes gerações.”

E esse papel está melhor? “Sem dúvida que está melhor. Mesmo fora [do mundo ocidental]. Não conheço muito, mas acho que pelo menos hoje se questiona, se sabe que o resto do mundo é diferente. As mulheres hoje têm mais voz.” Feminista? “Totalmente. Desde a primeira hora, fiz passeata, manifestação. Tudo.”

Outra síntese possível do livro e da história: “Passámos do lenço bordado para o lenço de papel, mas não deixámos de chorar e de assoar o nariz.” É neste jogo entre permanências e mudanças que Ana Maria Machado habita.

A imagem ajuda a construir a memória

O ilustrador João Fazenda, a quem coube a tarefa de ilustrar a edição portuguesa, também fez parte da mesa e revelou ter gostado muito do texto, “porque trata das questões do tempo, não infantiliza o leitor e é divertido de ler”. Disse ainda: “Não se nota que tem mais de 40 anos. Fala de jovens e se fosse escrito agora estaria cheio de telemóveis e coisas assim. Não se sente a falta de nada disso. Também fala de imagem. A imagem a ajudar a construir a memória.”

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“Dentro do quarto de minha mãe tinha um armário, dentro do armário tinha uma gaveta, dentro da gaveta tinha uma caixa, dentro da caixa tinha um envelope, dentro do envelope tinha um monte de retratos, dentro de um retrato tinha Bisa Bia” (pág. 15) João Fazenda

Para traduzir visualmente tudo isto, que considera “tão interessante e rico”, João Fazenda centrou-se na ideia de “o tempo ser uma acumulação de tempos, o tempo passado, o tempo futuro”. Tal como os desenhos: “Há um esboço, há uma finalização, há um movimento. Gosto de acreditar que o desenho é um fluxo, eles não terminam, continuam uns nos outros. O trabalho foi tentar que a própria imagem sugerisse essa construção. Há um ar de esboço, meio inacabado, mas que tem que ver com a memória. Lembramo-nos de algumas coisas com mais pormenor e de outras não.”

Ana Maria Machado mostrou-se satisfeita com o resultado. “Eu já sabia que ia dar certo porque este livro tem um lado abençoado. O João [Fazenda] mostrou-me porquê: é porque trabalha com a imagem. Parte de imagens, embora esteja em palavras. Um bom ilustrador capta isso imediatamente. A dimensão do tempo não vem por palavras soltas, chega às personagens por uma imagem. Tem até imagens que ainda não existem, já que a narrativa remete para o futuro. Um desafio para o ilustrador.”

O livro está publicado em 12 países e a autora nunca ficou desiludida com as ilustrações: “É muito enriquecedor esse diálogo com a imagem. Gostei de todas, mesmo as primeiras. Um livro de sorte.” A primeira edição fora do Brasil foi na Suécia.

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“Uma menininha linda, de cabelo todo cacheado, vestido claro cheio de fitas e rendas, segurando numa das mãos uma boneca de chapéu e na outra uma espécie de pneu de bicicleta soltinho, sem bicicleta, nem raio, nem pedal, sei lá, uma coisa parecida com um bambolê de metal” (pág. 18) João Fazenda

Ana Maria Machado apresenta-se como “uma senhora brasileira, de 81 anos, que escreve profissionalmente há mais de meio século, para idades diferentes”. Mas consegue imaginar-se outra: “Eu imagino tudo, posso ser várias outras coisas. Comecei como pintora, fui professora universitária, trabalhei como jornalista muitos anos. Podia ter seguido várias das outras encruzilhadas. Podia ter ido para outro caminho.”

Este caminho, que a trouxe até aqui, foi iniciado com leituras de infância de “Monteiro Lobato, Mark Twain e todos os clássicos”, enumera, acrescentando: “Havia histórias adaptadas da tradição portuguesa, ibérica, europeia em geral, mas recontadas para crianças brasileiras. Chamavam-se Histórias da Carochinha, Histórias do Arco-da-Velha. Lembro-me desses livros, com pequenas ilustrações, da Editora Quaresma. Havia os contos de fadas: Andersen, Perrault. Também Eça de Queirós. Passei a ler textos de autores portugueses sem estranhamento.”

Fato-macaco e macacão

No entanto, valoriza esse “estranhamento” na leitura, já que “mostra como somos capazes de entender uma coisa que não entendemos”. Exemplo: “Lembro-me de um livro que logo na primeira página tinha uma personagem que vestia um fato-macaco e entrava num autocarro. Eu parei ali a pensar ‘fato-macaco’?… E logo percebi, ‘macacão’, claro. Não é tão estranho assim para ‘fato-macaco’.” E o “autocarro” era um “ônibus”.

Acho muito importante que nós nos leiamos em nossos originais, nas nossas línguas. A gente não pode deixar de se ler mutuamente, esse encantamento que eu tenho lendo Saramago, Pessoa, lendo tantos, tantos… isso não podemos perder. Nem podemos negar às nossas crianças a oportunidade de nos ler, mesmo com estranhamento”, disse a escritora já na Fundação Calouste Gulbenkian, onde também estiveram presentes a directora da Tinta-da-China, Bárbara Bulhosa, e o diplomata brasileiro Gustavo de Sá.

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“Agora, eu, Isabel, que não tinha irmã nem irmão, já tinha uma amiga especial, uma bisavó-menininha, linda, linda, toda fofa, morando dentro do meu peito. Com boneca, arco, vestido de renda e tudo” (pág. 36) João Fazenda

Ana Maria Machado, a mais velha de 11 irmãos, filha de pai jornalista e mãe formada em Direito e que trabalhava na Biblioteca Nacional, recorda um passado cheio de livros. “Nós tivemos livros em casa sempre. O meu avô brasileiro [o outro era português, do Porto] era professor e tinha uma boa biblioteca. Então eu cresci rodeada de livros e a ouvir as pessoas a falar de livros. Tinha dois tios professores. Enfim, esse ambiente favoreceu esta escolha.”

Já uma das avós, que só aprendeu a ler depois de adulta, “era uma grande contadora de histórias, tinha um repertório de tradição oral muito forte”. Daí que as histórias e a leitura fossem elementos naturais da sua vida quotidiana. “Todos nós lemos e muito. Eu fui estudar Letras e acabei escrevendo. Os outros sempre seguiram lendo.” Tem quatro irmãos jornalistas e uma sobrinha que escreve para o público infanto-juvenil. “Mora em Portugal e faz muito sucesso no Brasil. Também é roteirista da Globo, chama-se Flávia Lins e Silva”, faz questão de divulgar.

Lamenta que, no Brasil, muitos projectos de apoio à leitura, como “sistemas de compras governamentais com distribuição nas escolas”, tivessem sido interrompidos nos últimos anos. “O Governo e o último Presidente não apoiavam a leitura, o livro. Não gostavam de livros, não valorizavam em nada a palavra escrita. Portanto, todos esses projectos foram interrompidos. Estão sendo retomados agora. Foram projectos que existiram independentemente dos governos: [Fernando] Henrique [Cardoso], Lula [da Silva], Dilma [Rousseff]. Foram de distribuição muito ampla de livros. Sempre foi um aspecto muito importante nos livros infantis.”

Através destas compras governamentais, Ana Maria Machado vendeu mais de 20 milhões de exemplares. “Foi assim que ficou rica?”, brinca o PÚBLICO. “Não é por aí… que ficarei rica. Os autores, os ilustradores e os editores, nessas compras governamentais, concordam em vender por um preço ínfimo.”

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“Num instante estávamos subindo na goiabeira. Lá em cima, depois de devorarmos as primeiras goiabas, Sérgio me olhou de novo e disse – Puxa, Bel, você é a menina mais corajosa que eu já conheci. Fiquei quieta, o coração batendo forte” (pág. 58) João Fazenda

Acredita que se leva uma criança a interessar-se por livros “lendo na frente dela”. Através do exemplo. “A criança aprende tudo na vida pelo exemplo. Ela deixa de comer com a mão e começa a comer com colher porque ela vê os adultos. Ela calça os sapatos quando está descalça porque ela vê o exemplo. Se os adultos perto dela lerem, ela vai ler. Se eles passam o dia no celular, ela vai passar o dia no celular. É assim que o ser humano aprende. Pelo exemplo das gerações anteriores. O que nós estamos formando hoje é o que nós vamos ter amanhã.”

Perante a questão sobre o que é um bom livro para crianças, recorda: “Fiz essa pergunta várias vezes às crianças quando falava com elas. A melhor resposta que encontrei foi a de um menino que me disse qualquer coisa como: ‘É um livro que tem surpresa.’ Então lê uma vez e já não tem surpresa?, disse-lhe. Ele respondeu: ‘Não. Tem um jeito de surpresa que volta sempre’.”

Passou a usar este elemento da surpresa em conversas com outras crianças e houve então outro menino que complementou a ideia: “A surpresa não precisa ser no que acontece pode ser nas palavras que contam o que acontece.” Achou esta resposta “maravilhosa, porque o leitor pode ser surpreendido sim pela expressão verbal”. O prazer do texto e não apenas do argumento.

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“Não dá para ser mulher-maravilha. Pelo menos não dá o tempo todo, sem fingir. Vou descobrindo que dentro de mim é uma verdadeira salada. No dia em que voltei às aulas, foi bem assim, com tudo misturado” (pág. 85) João Fazenda

Considera que os seus livros são bons. “Os que publiquei sim. Mas vários eu joguei fora e não publiquei. Desmanchei, pus no lixo, no cesto de papel, quando havia essas coisas… Olhava cada um e pensava ‘não me satisfaz’, por motivos diferentes. Escrevo, deixo descansar, volto para ver de novo. Seja em texto para criança ou para adulto.”

Quando foi jornalista, não podia fazer isso com essa calma. “Trabalhei dez anos em rádio. É uma pressão maior ainda [do que na imprensa]. Não é em termos do dia, mas de horas. Você tem noticiários em que o das 8h já é ultrapassado pelo do meio-dia e que é depois ultrapassado pelo das seis da tarde. Mas é uma boa escola, ensina a concisão, a objectividade.”

Durante 18 anos teve uma livraria, a Malasartes. “A livraria está lá, ainda existe, mas vendi a minha parte.”

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Ana Maria Machado escreve para adultos e para crianças Nuno Ferreira Santos

A propósito da visita ao Papa Francisco, a Roma, perguntamos se é crente. “Posso dizer que sim. Eu rezo.”​

No final da conversa com o PÚBLICO, em que nos focámos sobretudo na literatura para a infância e juventude, a autora fez questão de frisar: “Tenho 12 de livros de ensaios publicados, dez romances, livros de contos, entrei para a Academia Brasileira de Letras, presidi à academia. Enfim, não é uma coisa só em relação às crianças. Eu escrevo também para crianças por uma relação com a linguagem, não por uma relação com a criança. Convém dizer.”

Novos títulos em Setembro

Além de Bisa Bia, Bisa Bel, já estão publicados na colecção Pererê os seguintes títulos: Flicts, texto e ilustração de Ziraldo; Chapeuzinho Amarelo, texto de Chico Buarque, ilustrações de André Letria; A Bolsa Amarela, texto de Lygia Bojunga, ilustrações de Marie Louise Nery; As Reinações de Narizinho, texto de Monteiro Lobato, ilustrações de André Le Blanc.

Os próximos textos, a publicar a partir de Setembro, são Doze Reis e a Moça do Labirinto de Vento, de Marina Colasanti; História de Dois Amores, de Carlos Drummond de Andrade; O Menino Maluquinho, de Ziraldo; Arca de Noé, de Vinicius de Moraes; Marcelo, Marmelo, Martelo, de Rute Rocha. Sempre respeitando as versões originais dos autores.

São também parceiros nestas edições o Instituto Guimarães Rosa do Ministério das Relações Exteriores do Brasil e a Fundação Calouste Gulbenkian.

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