José Mattoso e Timor Leste

A presença do mais reputado historiador português em Timor não deixou de acompanhar o processo de reencontro do país com a sua identidade nacional.

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O trilho singular de vida de José Mattoso levou-o a Timor Leste, onde chegou por mão de uma licença especial para o exercício de funções de interesse público no período que se sucedeu ao fim da ocupação indonésia e antecedeu a independência.

Esteve ali literalmente “em comunidade”, alojado no bairro da cooperação em Vila Verde, mesmo ao lado da Sé de Dili, mas também em comunidade no seu percurso contínuo de contemplação e apreensão. Esteve em Timor de corpo e espirito inteiro, trazendo e deixando muitas questões. Foi um dos mais destacados professores da Universidade que frequentei e tive oportunidade de o conhecer pessoalmente no período em que coincidimos em Timor Leste.

Assim, pouco após a sua chegada, competiu-me acompanhar José Mattoso num encontro com Peter Galbraith, responsável da Administração das Nações Unidas, que estava a impedir o acesso de Mattoso aos arquivos da administração ultramarina portuguesa. Nesse momento em Dili, o filho do mais proeminente economista norte-americano, John Kenneth Galbraith, bloqueava a investigação do mais reputado historiador português, que o norte-americano integralmente desconhecia. Com a intervenção de Sérgio Vieira de Mello tudo se veio a resolver.

Além do trabalho com o que ainda sobrava dos arquivos ultramarinos em Dili, visto que parte dos arquivos tinha sido levada para a Indonesia, parte destruída na onda de violência subsequente ao referendo e outra parte permanecia em Portugal, José Mattoso procedeu, a convite de Xanana Gusmão, ao levantamento e à organização dos arquivos da resistência timorense.

Este trabalho começou numa casa de Manuel Carrascalão, no bairro de Comoro. Subsequentemente, com o apoio da Fundação Mário Soares e com o decisivo envolvimento de Alfredo Caldeira, construiu-se o Arquivo Museu da Resistência Timorense, em Dili. A exposição “A Nossa Vitória é uma Questão de Tempo”, inaugurada em Dili no dia da independência, 20 de maio de 2002, foi o expoente deste trabalho, que prosseguiria nos anos seguintes em Timor e em Portugal. Neste projeto, Agostinho Sequeira (Somotxo) foi o interlocutor timorense mais presente de José Mattoso e de Alfredo Caldeira da Fundação Mário Soares. Terá sido ainda por mão de Somotxo que José Mattoso descobriu a história de vida de Nino Konis Santana, e que levou à publicação do livro A Dignidade, Konis Santana e a Resistência Timorense (Lisboa, 2005 Editorial Temas e Debates).

Terá sido bem marcante a ida à casa refugio de Konis Santana, nas proximidades de Ermera, onde aquele dirigente da resistência se escondera nos últimos seis anos de vida e onde morreu pouco antes dos acordos de Nova Iorque que levaram à independência de Timor Leste. Nessa casa refugio em Ermera, José Mattoso ouviu os testemunhos da família que acolheu Konis Santana e teve acesso ao seu espólio material e manuscritos. Com este material, escreveu uma obra singular que revela a vida espiritual de Konis Santana, um mártir da causa nacionalista, indissociável do catolicismo. O movimento da resistência e a Igreja Católica ombreavam sem linhas de separação fixa nesta evocação de Konis Santana.

Noutro plano, como docente no Seminário Maior em Dare, José Mattoso deu conta das dificuldades que os seminaristas timorenses de língua tétum tinham para apreender conceitos teológicos devido a prevalência no espírito dos seus alunos de uma cosmogonia mais ancestral do que o cristianismo, não obstante o fortíssimo vínculo ao catolicismo.

José Mattoso retomaria ainda em Timor Leste reflexões sobre identidade nacional, já não num contexto medieval português mas sim no quadro contemporâneo que ali se deparava, de emergência de uma nova nação num contexto pós colonial e pós ocupação. Embora não tenha diretamente participado nos debates sobre a opção do português como língua oficial do novo estado, onde o contributo académico mais decisivo foi de Geoffrey Hull (Timor Leste, Língua e Política Nacional, edição Instituto Camões, 2001), a sua presença em Timor não deixou de acompanhar este processo de reencontro de Timor Leste com a sua identidade nacional.

Diplomata, Chefe de Missão Adjunto na Missão de Portugal em Díli, de 2000 a 2002

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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