José Mattoso (1933-2023): “A espantosa realidade” da História

Uma vida cívica e intelectualmente inspiradora, que permanece no seu exemplo e na sua obra.

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José Mattoso morreu aos 90 anos Joana Bourgard
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A marca de José Mattoso na forma de conceber, praticar e divulgar a História modificou de forma muito significativa a maneira de encarar a disciplina entre nós. Temas clássicos como as origens e a formação de Portugal, durante décadas tratados essencialmente com um carácter ideológico e apologético, passaram a ser explicados de modo racional, objectivo e documentado através da investigação que dedicou à nobreza medieval, ao reinado de Afonso Henriques e à acção governativa da Coroa portuguesa na Primeira Dinastia.

A abordagem da História como um processo não linear mas complexo, procurando abarcar integradamente as vertentes sociais, políticas, económicas, mentais, religiosas e até artísticas dão ao vasto conjunto da sua obra características únicas entre nós, na senda do que de melhor se fazia na Europa da segunda metade do século XX. Livros como Identificação de Um País. Ensaio sobre as Origens de Portugal (1096-1325), Ricos-Homens, Infanções e Cavaleiros, D. Afonso Henriques e outros títulos também evocados nestas páginas por colegas e discípulos são verdadeiras “chaves” para perceber o Portugal medieval, mas também as raízes do país que hoje somos. O estímulo intelectual vinha-lhe, aliás, do desejo de compreender “a espantosa realidade das coisas” de que, tal como Pessoa, fazia a sua “descoberta de todos os dias”, como gostava de repetir. Avesso a ostentações e a formalismos ocos, sendo um católico rigoroso na sua fé e exigente na sua prática, abriu também novas e frutuosas perspectivas no campo de uma História Religiosa moderna e não confessional.

José Mattoso gostava de se definir como contemplativo e essa era uma das suas inegáveis facetas. Mas temperava tal característica com um espírito pragmático em que à reflexão se seguia e execução. Foi assim nos cargos oficiais que desempenhou, sobretudo como presidente do então criado Instituto Português de Arquivos (1988-1990) e mais tarde como director do Instituto dos Arquivos Nacionais /Torre do Tombo (1996-1998), dando curso a uma arquivística actualizada pelos padrões do Conselho Internacional de Arquivos.

Neste tipo de evocações é frequente pecar-se tanto por defeito como por excesso, e estas linhas não constituem excepção. O que não impede que se sublinhe o facto de Mattoso nunca ter designado sucessores nem herdeiros em termos historiográficos. Deixa, no entanto, muitos e diversos discípulos em praticamente todas as universidades portuguesas, do Minho ao Algarve, incluindo as regiões autónomas, como, de resto, se pode comprovar pelos depoimentos prestados ao PÚBLICO por historiadores e investigadores de diferentes orientações e especialidades.

Também por isso ele não se cansava de evocar Mercedes Sosa, Julieta Parra e Joan Baez, dando Gracias a la vida. Uma vida cívica e intelectualmente inspiradora, que permanece no seu exemplo e na sua obra.

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