Mais crianças por sala, menos burocracia na reconversão: Governo a correr contra a falta de lugares nas creches

Portaria prevê mais duas crianças por sala e possibilidade de abertura à noite e fins-de-semana. Debate parlamentar contou com exemplos de pais desesperados: um casal chegou a pensar emigrar

Foto
Em Setembro o programa Creche Feliz será alargado, mas falta de vagas continua Ricardo Lopes
Ouça este artigo
00:00
07:17

Com Setembro quase a chegar e muitos pais de cabelos em pé sem saberem ainda se vão ter uma vaga gratuita para os seus filhos ao abrigo do programa Creche Feliz, a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS), Ana Mendes Godinho, publicou uma portaria que permite o aumento de crianças por sala e a desburocratização na reconversão de espaços para novas salas, na tentativa de, ainda este ano, acrescentar 6000 novos lugares à parca oferta existente. A portaria foi publicada esta semana e prevê também maior flexibilização de horários.

A pedido do Bloco de Esquerda, a escassez de vagas nas creches, que está a impedir o real acesso à gratuitidade a todos os que a ela teriam direito, voltou esta semana ao Parlamento. Às críticas lançadas por Joana Mortágua e praticamente toda a oposição, a ministra ia respondendo com os resultados obtidos, em concreto, o facto de 58 mil crianças estarem já a beneficiar do programa Creche Feliz, quando, nesta primeira fase, o que tinha sido avançado como previsão pelo Governo, disse, é que se chegasse às 40 mil.

Mas Ana Mendes Godinho não pôde ignorar o óbvio: as cerca de 119 mil vagas que existem não chegam para todos e encontrar uma vaga disponível em distritos como o Porto, Lisboa ou Setúbal é uma verdadeira lotaria. Durante a tarde de quarta-feira foram dados exemplos de pais desesperados, como uma mãe de Almada, que inscreveu o filho em 12 creches e não teve vaga em nenhuma. E de uma outra mãe de Guimarães, cuja família até ponderou abandonar a casa que comprou há cerca de um ano para se mudar para outro local onde conseguisse encontrar uma vaga para o filho, depois de ver recusadas todas as tentativas para lhe encontrar um lugar naquele concelho, na Maia e na Póvoa de Varzim.

A ministra ia consultando a aplicação que indica as vagas existentes ao abrigo da Creche Feliz, e garantia que havia oferta nos locais indicados, mas André Almeida, o pai da criança de Guimarães dada como exemplo, confirma o que já outras famílias têm vindo a dizer: “Consultámos a app várias vezes, mas, quando ligávamos para os sítios onde supostamente existiam vagas, diziam-nos que já estava ocupada e todas as creches tinham uma lista de espera enorme”, diz.

Com 32 anos e o filho prestes a fazer um ano, André conta a saga para tentar encontrar uma creche para o bebé, e que começou poucos meses depois de ele e a mulher terem descoberto que iam ser pais. Nada de vagas nos inúmeros locais para onde ligaram, falta de informação por parte da Segurança Social quando, já desesperados, tentaram encontrar uma ama. Depois, o alívio, com a indicação de que existia uma vaga numa ama da Segurança Social a cinco minutos de casa, para logo a seguir chegar a desilusão: “Disseram-nos que, afinal, não podia ser, por causa dos nossos rendimentos e de outros requisitos”, conta. Ironia: nesse mesmo dia, a mulher de André soube que iria ser despedida.

A família ponderou abandonar Guimarães, passou-lhes pela cabeça emigrar. Até que nesta quarta-feira, na tarde em que decorria o debate parlamentar e em que o seu caso foi abordado, chegou uma nova chamada da Segurança Social: “Disseram-nos que, afinal, conseguiam uma vaga para nós numa ama aqui perto de casa. Ficámos satisfeitos, esperamos que isto esteja finalmente resolvido”, diz André Almeida.

Um alívio que não será sentido por todas as famílias que ainda não sabem se terão direito a uma vaga gratuita no próximo ano lectivo. A escassez é reconhecida por todos — uma análise recente refere que seria necessário duplicar o número de vagas existentes para abranger todas as crianças com direito à gratuitidade —, e o aumento de vagas vai demorar.

Ana Mendes Godinho foi várias vezes questionada sobre quando estariam disponíveis mais lugares, nomeadamente, os 26 mil que serão abertos graças ao financiamento do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e do programa Pares, mas a ministra só conseguiu garantir que espera ter, ainda este ano, 6000 novos lugares, graças às alterações publicadas esta semana em portaria, depois de terem sido negociadas com os parceiros.

Abertura à noite e fins-de-semana

Segundo o documento, publicado em Diário da República na passada quarta-feira, o Instituto da Segurança Social pode autorizar o aumento de crianças por sala, até ao máximo de duas, desde que o espaço tenha condições para isso. Ou seja, em vez de dez crianças nas salas até à aquisição de marcha, será possível haver 12, assim como as 14 crianças permitidas entre a aquisição de marcha e os 24 meses poderão passar a ser 16.

Outra alteração introduzida pela portaria — e que tinha sido várias vezes pedida pela Associação de Creches e Pequenos Estabelecimentos de Ensino Particular (ACPEEP) — é a desburocratizarão na reconversão de espaços em edifícios já dedicados às crianças, mas que não estavam até agora a funcionar como salas de creche. “Assinei uma simplificação transformadora para facilitar a reconversão automática de espaços previamente dedicados à área de infância para salas de creche, desde que salvaguardadas naturalmente as questões de segurança e conforto, bastando uma comunicação ao Instituto da Segurança Social para o efeito”, disse, no Parlamento, Ana Mendes Godinho.

A portaria confirma-o, dizendo que “a reconversão de espaços, previamente licenciados ou isentos de licenciamento, dedicados à infância ou o aumento de capacidade das salas não está sujeito a licenciamento” e que para avançar nesse sentido basta “uma mera comunicação prévia da reconversão ou o aumento ao ISS”.

O documento acrescenta ainda, à portaria anterior que estabelecia as normas de instalação e funcionamento das creches, que estas “podem ser instaladas [...] em edifícios existentes ou em espaços integrados em universidades, estabelecimentos hospitalares, empresas e entidades públicas”, sendo dispensadas regras como a que diz que estes espaços devem ser preferencialmente instalados no rés-do-chão e com contacto directo com o exterior, desde que esteja salvaguardado o conforto e segurança das crianças. A portaria também indica que as creches podem ser instaladas em “construções modulares”.

As novas regras, já em vigor desde esta quinta-feira, permitem ainda que as creches possam “funcionar em permanência, incluindo período nocturno e fins-de-semana, desde que exista a necessidade de frequência, por motivos relacionados com a actividade laboral de ambos os pais ou de quem exerce as responsabilidades parentais, ou motivos de força maior devidamente justificados e limitados no tempo”.

Apesar destas alterações, na tentativa de alargar urgentemente a rede disponível, há cerca de 3000 lugares de creche que não podem, por enquanto, ser abrangidos pela gratuitidade. São espaços que estão sob a alçada de municípios e que a Lei de Bases da Segurança Social estipula que não podem ser alvo de acordos similares aos que foram feitos com os parceiros sociais e a ACPEEP. Uma “regra absurda”, segundo o deputado bloquista Pedro Filipe Soares, que Ana Mendes Godinho disse estar disponível para alterar. “Estamos completamente disponíveis, nos mesmos moldes do que foi feito com o sector privado, para que façamos o mesmo com as creches dos municípios. Isto implica uma alteração da Lei de Bases, é uma questão estrutural, mas estamos aqui para fazer esse caminho”, disse a ministra.

O programa Creche Feliz entrou em vigor para o sector social e solidário a 1 de Setembro do ano passado, e a 1 de Janeiro deste ano para o sector privado, prevendo a gratuitidade para todas as crianças nascidas após 1 de Setembro de 2021.

O programa é faseado e no próximo ano lectivo deverá abranger “todas as crianças que ingressem no 1.º ano da creche e as crianças que prossigam para o 2.º ano”. Em 2024, este alargamento incluirá também as que frequentem o 3.º ano, com o Governo a prever que a abrangência, nessa altura, chegue às cem mil crianças.

Para concretizar o programa, o Estado paga às creches 460 euros mensais por cada criança abrangida. Um investimento que, neste momento, segundo Ana Mendes Godinho, implica o pagamento de 27 milhões de euros por mês às creches aderentes.

Sugerir correcção
Ler 8 comentários