Em França, os portugueses “só estão protegidos pelo pára-raios magrebino”

França voltou a ser palco de protestos violentos, após um jovem ter sido morto pela polícia. O PÚBLICO falou com Carlos Pereira, jornalista que acompanha a comunidade portuguesa no país.

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Confrontos entre manifestantes e forças de segurança em Nanterre, cidade onde vivia o jovem de 17 anos morto a tiro pela polícia Reuters/GONZALO FUENTES
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Carros queimados, montras partidas, polícias e civis feridos. Várias cidades francesas voltaram a ser assoladas por protestos violentos, após a morte, na terça-feira, de um jovem de 17 anos baleado por um agente da polícia.

Nahel, residente em Nanterre, nos subúrbios de Paris, e de ascendência magrebina, foi mandado parar numa operação policial sob suspeita de infrações de trânsito, mas tentou abandonar o local. Acabou morto a tiro. O momento foi filmado, o vídeo foi divulgado nas redes sociais, e reacendeu o debate sobre racismo e violência policial em França, levando dezenas de milhares de manifestantes para as ruas.

Para conhecer a perspectiva dos portugueses em França, o PÚBLICO ouviu Carlos Pereira, jornalista e director do LusoJornal, a viver no país há quatro décadas, e que acompanha e integra a comunidade lusa.

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Carlos Pereira, director do LusoJornal, deixou em 2008 a presidência do Conselho das Comunidades Portuguesas DR

O que está a acontecer em França?
Os jovens estão a reagir a uma postura da polícia que consideram demasiado agressiva em relação a quem vive nos subúrbios das grandes cidades — neste caso, de Paris. As redes sociais transmitiram o vídeo de uma morte quase em directo e o impacto foi enorme.

Nanterre é uma grande cidade junto à capital, onde o presidente da câmara [Patrick Jarry, do Partido Comunista Francês] valoriza muito a interculturalidade e tem estado na linha da frente a manifestar o seu apoio e solidariedade à família de Nahel. Mas também tem apelado aos jovens para que mantenham a calma.

A morte de Nahel é sinal de racismo e xenofobia em França, como denunciam os manifestantes?
O assunto é complexo. Há outra vertente muito importante a ter em conta: a bipolarização do debate político. De um lado, a direita e a extrema-direita afirmam que os polícias estão a defender a segurança do país, e se recorrem à força é porque é necessária. Do outro, a esquerda e a esquerda radical dizem que os polícias matam. E o discurso da população é reflexo dos discursos da classe política. Já o sindicato dos agentes das forças de segurança defende que há uma pressão enorme sobre os polícias, que não têm formação suficiente e que são poucos.

Mas viver em certos subúrbios de Paris, como este onde tudo aconteceu, pode ser, por si só, uma forma de discriminação. Há bairros degradados, sem os serviços necessários, e demolir esses prédios não resolve problemas.

Como é que a comunidade portuguesa se posiciona face ao tema? Ainda é uma comunidade discriminada?
Lembro-me muito de uma expressão do sociólogo Albano Cordeiro, que continua actual: os portugueses só estão protegidos pelo pára-raios magrebino. Tudo o que acontece de mal é atribuído aos magrebinos. Por exemplo, um dos terroristas do ataque ao Bataclan, em 2015, tinha mãe portuguesa e pai argelino. Ninguém falava da origem portuguesa.

A comunidade portuguesa já não é discriminada como era há algumas décadas, o preconceito não é o mesmo. Há partidos anti-imigração que hoje dão os portugueses como exemplo, usam uma comunidade migrante contra a outra. E muitos dos portugueses em França, que foram saindo dos bairros de lata, identificam-se mais com quem faz essa separação e diz que somos "os melhores imigrantes, os que se portam melhor" — comentários que geralmente partem da extrema-direita. O passado fica esquecido. Sim, os portugueses conseguiram sair desses bairros, mas alguém teve de lá ficar.

A violência das manifestações em França mostra uma sociedade a chegar ao seu limite?
Ser revolucionário está na cultura francesa. Não é por acaso que aconteceu aqui a revolução de 1792, o Maio de 1968, o movimento dos coletes amarelos. As pessoas acreditam no poder da greve, do protesto, sempre organizados por sindicatos.

Para quem estava habituado a essa organização, depois de ver que as manifestações contra o aumento da idade da reforma, afinal, não geraram nenhuma mudança, as reacções podem ser várias: como uma mudança de intenção de voto para os extremos; ou maior agressividade: incendiar, partir. Há muita gente saturada, e não vamos perceber isso pelo rebentar de um barril de pólvora, mas pelo avanço da extrema-direita na Europa.

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