Austrália é o primeiro país a autorizar a terapia com MDMA para stress pós-traumático

Depois da psilocibina, a MDMA. As autoridades autralianas determinaram que passaria de substância proibida a controlada, para ser usada na terapia com psicadélicos. Mas há quem alerte para os perigos.

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Austrália foi o primeiro país do mundo a tornar a MDMA acessível para fins médicos EPA/ENNIO LEANZA
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Um cientista pega num recipiente com um líquido transparente e examina-o. Numa rave, até poderia ser vendido com os nomes de rua, "md", "ecstasy" ou "molly". Mas aqui, no laboratório de uma universidade de uma das cidades mais remotas do mundo, utiliza-se MDMA com um objectivo terapêutico em mente.

A equipa de Química da Universidade da Austrália Ocidental tem estado a trabalhar no sentido de modificar este composto químico para que possa ser utilizado de forma mais eficaz em tratamentos para a saúde mental.

É uma missão que se tornou subitamente mais urgente, depois de a Austrália ter anunciado que seria o primeiro país a permitir que os psiquiatras prescrevessem MDMA para tratar a perturbação de stress pós-traumático.

"A atenção vai estar em nós conforme isto se for desenvolvendo", disse Michael Winlo, director executivo da empresa australiana de biotecnologia Emyria, que está a financiar parcialmente o trabalho de laboratório desta investigação.

A entidade reguladora dos medicamentos da Austrália, a Therapeutic Goods Administration, surpreendeu quase toda a gente incluindo as instituições de saúde do país ao decidir que, a partir de Julho, a MDMA passaria de substância proibida a substância controlada. A psilocibina, o ingrediente activo dos cogumelos mágicos, também vai poder ser utilizada na terapia contra a depressão resistente.

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Mark Walkey (à esquerda) e Matthew Piggot observam amostras no laboratório da Universidade Ocidental da Austrália, onde estão a tentar encurtar a sobrevida da MDMA Frances Vinall

Assim, a Austrália transformou-se numa experiência que outros países, incluindo os Estados Unidos, poderão observar. E é particularmente verdade no caso da MDMA, que nenhuma outra nação tornou acessível como tratamento para saúde mental, excepto em circunstâncias especiais limitadas, e que tem sido alvo de interesse crescente para a Food and Drug Administration (FDA).

Alguns especialistas consideram que a alteração da lei na Austrália foi demasiado rápida e pode pôr os doentes em risco. No entanto, há quem defenda a droga e afirme que a medida pode proporcionar a recuperação de pessoas com doenças mentais debilitantes.

Como funciona a MDMA?

A MDMA inunda o cérebro com substâncias químicas que provocam o bem-estar e que o próprio cérebro produz naturalmente: serotonina, norepinefrina, oxitocina e dopamina. Por outro lado, o medo reduz-se: a amígdala, o sistema de resposta a ameaças do cérebro, acalma-se.

É um cocktail que, de acordo com os profissionais de saúde, permite ao doente examinar experiências traumáticas passadas sem as respostas típicas de evitação, postura defensiva e vergonha.

Um ensaio clínico de 2021 com pessoas com stress pós-traumático grave, publicado na Nature, descobriu que 88% melhoravam de forma significativa após três sessões de terapia assistida por MDMA. Mais de dois terços já não tinham os critérios necessários para serem diagnosticados com stress pós-traumático dois meses depois.

A MAPS, associação multidisciplinar para estudos com psicadélicos, sediada nos EUA, patrocinou a investigação e solicitou a aprovação da FDA.

Está também em curso uma investigação sobre o potencial da MDMA no tratamento da dependência, da ansiedade social e, no caso do laboratório UWA-Emyria, da doença de Parkinson. No total, prevê-se que o mercado global de substâncias psicadélicas valha mais de 10 mil milhões de dólares até 2027.

"É uma área bastante em voga", disse Matthew Piggott, professor associado de Química Medicinal e director do laboratório da Universidade da Austrália Ocidental.

Piggott e a sua equipa estão a tentar encurtar a meia-vida da MDMA (ou seja, o período de tempo em que a droga está a fazer efeito) e na eliminação da (já de si) fraca propriedade viciante. No laboratório, um químico deita cuidadosamente uma solução clara num frasco a partir de uma série de tubos de ensaio. No interior, cada um contém um análogo da droga. Perto dele, um colega manuseia um pequeno frasco cheio de um precursor amarelo cristalino, enquanto outro desliga um aparelho com uma esfera giratória.

Perth na vanguarda da terapia com psicadélicos

O trabalho ajudou a colocar a capital do estado, Perth, uma cidade com milhares de quilómetros de deserto de um lado e o oceano Índico do outro, na vanguarda improvável da indústria das terapias psicadélicas, actualmente em crescimento.

A abordagem reguladora favorável do estado fez com que empresas australianas de biotecnologia que trabalham com MDMA e psilocibina se instalassem ali, afirmou Suzy Madar, advogada especializada em propriedade intelectual na área da saúde.

Mas as empresas não deixaram de ficar surpreendidas quando estas drogas foram reavaliadas (passando a ser substâncias controladas) em Fevereiro.

"Não é muito normal que a TGA assuma a liderança neste tipo de área", disse Winlo da Emyria. "Isto coloca os vários intervenientes neste espaço sob holofotes, para ver como vamos proceder.”

Alertas dos especialistas

Alguns especialistas estão preocupados com o facto de a Austrália não ter criado um quadro regulamentar adequado para este tipo de tratamento.

"Quem está no terreno a fazer investigação consegue ver como haverá muito poucas barreiras de protecção", disse Paul Liknaitzky, chefe da investigação clínica psicadélica na Universidade Monash e co-fundador da empresa de terapia psicadélica Clarion Clinics.

"A segurança e a qualidade do que é fornecido dependerá em grande parte da boa vontade e da competência dos fornecedores e não das autoridades e do Governo", afirmou.

Foi a TGA, reguladora que trabalha de forma independente do Governo, que tomou a decisão. Deu algumas orientações, mas o seu envolvimento na supervisão das terapias com MDMA e psilocibina acabou agora em grande parte.

Em vez disso, serão os comités de ética em investigação humana – cerca de 200 na Austrália - os responsáveis pela avaliação dos pedidos dos psiquiatras que se queiram tornar prescritores autorizados, com a aprovação final da TGA.

Uma das preocupações expressas pelos especialistas prende-se com a igualdade de acesso: prevê-se que os tratamentos custem inicialmente cerca de 17.000 dólares australianos (cerca de 10.300 euros) para aqueles que querem fazer também sessões de terapia antes e depois da toma do medicamento e sessões múltiplas de dosagem (que duram cerca de oito horas cada).

"Uma grande responsabilidade"

Outra preocupação é a possibilidade de se ultrapassarem algumas fronteiras. As clínicas australianas que planeiam oferecer terapia com MDMA para stress pós-traumático disseram que iriam adaptar o manual de tratamento publicado pela MAPS, a organização que solicitou a aprovação da FDA.

Este método inclui o "toque terapêutico" entre o profissional e o paciente. Isso pode incluir o paciente ser "abraçado" pelo terapeuta, que também pode colocar a mão "numa área onde o doente está a sentir dor, tensão ou outros sintomas físicos". A falta de toque pode ser entendida como "abuso por negligência", diz o documento.

Este documento proíbe, contudo, qualquer comportamento sexual entre terapeuta e paciente e exige consentimento prévio e contínuo para o toque. Recomenda-se que dois terapeutas, geralmente uma mulher e um homem, estejam na sala para cada sessão de dosagem e que as sessões sejam gravadas.

A TGA disse estar convencida de que poderiam ser estabelecidas salvaguardas adequadas no sistema existente.

Mas Hester Wilson, porta-voz para o álcool e drogas do Royal Australian College of General Practitioners, disse que o uso de "toque terapêutico" num tratamento assistido por MDMA a preocupa.

"Se já vimos ou estivemos com pessoas que tomam MDMA, as suas fronteiras são muito ténues. São tão vulneráveis emocionalmente que dizem a toda a gente que os amam", disse Wilson.

Ainda assim, o aparente potencial da MDMA para ajudar pessoas que não responderam a outros tratamentos é atractivo para muitos.

No Pax Centre, uma clínica focada no tratamento de traumas em Perth, os co-fundadores Claire Kullack e Jon Laugharne fizeram formação, juntamente com 18 membros da equipa, e receberam a aprovação do comité de ética para a terapia, utilizando um modelo de ensaio clínico com sessões gravadas de dois terapeutas e uma parceria com a Emyria, a empresa de biotecnologia.

Segundo Laugharne, cerca de 20 a 30% dos seus clientes com stress pós-traumático apresentaram poucas melhorias com os métodos de tratamento disponíveis. A clínica está cautelosamente optimista quanto à possibilidade de dar a algumas dessas pessoas uma vida mais plena.

"Estamos na vanguarda de algo – pela primeira vez", disse ele secamente, referindo-se à Austrália. "É emocionante, mas também uma grande responsabilidade."


Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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