Em democracia, os ditadores não merecem honras de Estado

Neste momento, existem mais de mil presos políticos no Senegal, entre os quais menores, pessoas comuns, doentes crónicos, jornalistas, sindicalistas, ativistas e militantes de partidos políticos.

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Em abril, no meio de tensões políticas, João Cravinho, ministro dos Negócios Estrangeiros, foi recebido por Macky Sall (MS). Na altura, denunciámos o silêncio do Estado português perante as derivas autoritárias do regime senegalês. Agora, é o Estado português a receber dias 20 e 21 de junho, através da Presidência da República e da Assembleia da República, o Presidente do Senegal com todas as honras e solenidades institucionais. Não haveria qualquer problema se não fosse o caso de Macky Sall ser um ditador que governa através da repressão e do nepotismo.

Neste momento, existem mais de mil presos políticos no Senegal, entre os quais menores, pessoas comuns, doentes crónicos, jornalistas, sindicalistas, ativistas e militantes de partidos políticos, nomeadamente do PASTEF - Les Patriotes, cujo líder, Ousmane Sonko continua com o acesso a casa bloqueado, em prisão domiciliária arbitrária, sem ordem judicial nem decisão administrativa.

Em 2011 o povo ergueu-se contra o terceiro mandato do Presidente Abdoulaye Wade e Macky Sall foi eleito e quer agora exercer um terceiro mandato que a constituição não permite e, nas suas próprias palavras, “reduzir a oposição à sua mais simples expressão”, corrompendo, chantageando, prendendo, torturando e matando opositores políticos.

Desde março de 2021, foram assassinadas dezenas de pessoas em manifestações e locais de detenção. Só nas manifestações do início de junho, contra a sentença que afasta Ousmane Sonko da corrida às presidenciais de 5 de fevereiro 2024 e que todas as sondagens dão como vitorioso na primeira volta, houve mais de 30 mortes. MS urdiu um complot através de processos judiciais para afastar o seu principal challenger da corrida eleitoral ao mesmo tempo que instalou o caos para reforçar e legitimar a repressão.

Desde março de 2021, além de François Mankabou, várias pessoas foram torturadas até à morte. Outras, ligadas às forças de segurança e serviços de informação do Estado, desapareceram (caso dos agentes Fulbert Sambou e Didier Badji, por ex.). Dezenas de militantes partidários e ativistas estão em prisão domiciliária por delito de opinião, com pulseira eletrónica. A sanha autoritária do regime contra as liberdades e garantias fundamentais vai ao ponto de cortar pela 2ª vez, o sinal do canal da televisão Walfradji, talvez o único órgão televisivo que mostra a realidade galopante das derivas autoritárias do governo. Todos os jornalistas conhecidos pela sua coragem e compromisso democrático estão sob ameaça.

Por exemplo, os célebres jornalistas Pape Alé Niang e Thioro Makhou Mandela, em liberdade provisória, continuam sob controlo judicial após terem sido torturados em prisão preventiva. Pape Alé Niang só conseguiria a liberdade provisória após uma greve de fome que o deixou com graves sequelas para a saúde. Os seus colegas Pape Ndiaye de Walf TV, Serigne Saliou Gueye, cronista residente na SenTV e diretor de publicação do jornal diário Yoor-Yoor e a repórter Maty Sarr Niang do site informativo “Sans Limites”, estão nos calabouços da ditadura, em prisão preventiva. Estão todos acusados “de apelo à insurreição, atos e manobras suscetíveis de pôr em perigo a segurança pública, terrorismo, usurpação de função de jornalista (sic), ofensa a magistrados”, etc.

Apesar de fazer parte dos “46 países menos desenvolvidos” e dos 25 mais pobres do mundo (dados da ONU e Banco Mundial), o Senegal tem uma elite que gravita à volta do seu Presidente ostentando sinais obscenos da riqueza obtida em esquemas de corrupção com comissões fraudulentas e desvios de fundos públicos para offshores, contas no estrangeiro e participações com capitais em empresas. Enquanto a pobreza se mantém, multinacionais operam no país em sectores estratégicos da economia, nomeadamente na exploração de materiais primas, energia, telecomunicação e transportes.

Dos mais ricos no Senegal, MS tornou a corrupção um instrumento de gestão e governo dos recursos públicos e das parcerias público-privadas. Sobretudo no segundo mandato desta presidência que dura há mais de 10 anos, o Estado e os serviços públicos tornaram-se numa coutada do clã presidencial que vive na opulência enquanto o povo está num profundo processo de pauperização.

Apesar de ter sido visto durante muito tempo como uma “vitrina democrática em África”, o Senegal conheceu profundas crises políticas em 62-63, 68, 88, 93 e 2010-11. Mas, nunca antes o Estado foi tão capturado nas suas funções vitais como está hoje pelo clã presidencial que saqueia os recursos e reprime qualquer veleidade democrática.

Em 63 anos de soberania, MS é o quarto Presidente da República e o primeiro que nasceu depois das independências, democraticamente eleito por sufrágio universal e de forma totalmente transparente. A sua eleição suscitou enorme expetativa na derrota da cleptocracia na gestão pública, contra o clientelismo e a manipulação política. Mas MS tornou-se o pior Presidente da história do Senegal, aquele que espezinhou as instituições e monarquizou as funções soberanas do Estado ao esbater as fronteiras da separação dos poderes executivo, parlamentar e judicial. Impôs-se como monarca numa república frágil, cujas instituições estão ao serviço do clã e dos seus interesses.

As carnificinas financeiras, com desvios de fundos públicos, sobrefaturação, falcatruas e corrupção nas concessões e atribuição de partes de mercados públicos, aprofundam a falência da força pública no que toca aos setores essenciais para a resposta social ao empobrecimento crónico, causado por um modelo económico predatório. A voragem mercantil das opções económicas do regime transformou os seus governantes em intendentes de interesses estrangeiros, privilegiando investimentos estrangeiros em elefantes brancos, obras de regime sem nenhum impacto positivo na melhoria concreta das condições de vida do povo, mas permitindo às elites amealhar fortunas gigantescas.

O regime do Presidente MS é um regime mafioso à moda da "família Corleone", em que o próprio, sua mulher, seus filhos, irmão e cunhado são o núcleo duro do clã. MS conspurcou a tradição republicana das forças de segurança pública ao conseguir transformar algumas chefias militares e policiais, nomeadamente o general Moussa Fall e o comissário Bocar Yague, em chefes de milícias armadas. O conluio entre forças de segurança e milícias armadas do APR, o partido do Presidente, é comprovado por recentes reportagens da imprensa internacional.

Há muito que se especulava sobre o envolvimento direto do filho e da mulher do presidente, assim como de alguns seus amigos no recrutamento e armamento de milícias. Para além disso, é público que a família do Presidente e da sua mulher, nomeadamente os seus respetivos irmãos, ocupando cargos executivos no Governo e nas empresas públicas, ganham a maior parte dos mercados através de empresas satélites e esquemas de corrupção. O Senegal vai iniciar a exploração do petróleo, do gás natural, do lítio tornando-se assim uma cobiça de tantos interesses económicos e geopolíticos. Macky Sall quer aproveitar disso para arranjar aliados a nível internacional para limpar a imagem de ditador e manter-se ao poder para garantir o controlo dos recursos naturais ao seu clã.

Portugal deve escolher intransigentemente a democracia e os direitos humanos em detrimento dos negócios. Nenhuma diplomacia económica autoriza a legitimação da ditadura. Alguém que governa roubando e empobrecendo o seu povo, alguém que instrumentaliza e manipula a justiça como instrumento de liquidação política dos seus adversários, alguém que quer “reduzir a oposição à sua mais simples expressão”, alguém que viola os preceitos constitucionais que jurou defender apenas para legitimar um golpe de estado constitucional que lhe garanta a manutenção no poder, alguém que governa o seu povo pelo medo e pela violência, não merece respeito democrático e, muito menos, honras num Estado de Direito.

Em vésperas dos 50 anos do 25 de abril que nasceu em África, cujo horizonte era a liberdade incondicional e a democracia total, o Estado Português não pode branquear um ditador como Macky Sall. Por respeito a quem deu a vida na luta contra o fascismo do Salazar e ousou acreditar na liberdade como possibilidade tangível, receber o ditador senegalês é uma afronta. E é sobretudo um insulto à vontade de futuro que alimentou a determinação de quem lutou pela democracia em que hoje vivemos.

*O autor é cidadão luso-senegalês

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