Lembrar Luís de Camões, “numa época de apoucamento da língua”

Regozijo-me com o facto de o Ministro da Educação ter evidenciado o caos que os alunos, e também os professores, sentem no ensino do Português. Preocupá-lo-á, tal situação?

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Lá vem a “Velho do Restelo”, dirão alguns leitores. Por sinal velha e também do Restelo, desde longa data, para além de fiel leitora do poeta, criador da venerável figura.

A proximidade do 10 de Junho trouxe-me Luís de Camões, não podendo deixar de manifestar o orgulho que sempre tive pelo facto de o dia da nossa identidade estar intimamente ligado não a um herói guerreiro, mas a um poeta que esforçadamente salvou o seu Canto de um “naufrágio triste e miserando” (Canto X). Tendo escrito “Numa mão sempre a espada e noutra a pena” (Canto VII), é a sua obra literária que sobressai pelo pendor poético e atitude crítica, pelo “engenho” e “honesto estudo” (sublinhe-se este honesto estudo tão em desuso hoje em dia) e pela nobre opção de escolher quem canta. Não surpreende, pois, que, honrando o valor humanista do “espírito crítico”, acentue que não cantará Nenhum ambicioso, que quisesse/ Subir a grandes cargos,[…] /Só por poder com torpes exercícios/ Usar mais largamente de seus vícios;// Nenhum que use de seu poder bastante/ Pera servir a seu desejo feio,// nem Quem, com hábito honesto e grave, veio,/ Por contentar o Rei, no ofício novo,/ A despir e roubar o pobre povo!// […] E não acha que é justo e bom respeito/ Que se pague o suor da servil gente;/ ou ainda quem taxe com mão rapace e escassa,/ Os trabalhos alheios que não passa.// (Canto VII).

Referir Luís de Camões implica forçosamente falar da Língua Portuguesa, com o mal-estar que ressalta de ser ostensivamente tão mal-amada por “gente surda e endurecida” que se pavoneia pelo Poder e outros lugares. Confirma-o o privilégio dado ao texto utilitário em detrimento do literário, de que é exemplo o estudo do poeta, lírico e épico. O Ministro da Educação devia saber que um aluno que saiba ler e interpretar textos literários não terá qualquer problema em ler e em interpretar textos pragmáticos. O contrário é que será impossível.

Não surpreende também que Luís de Camões fosse depreciativamente usado como argumento estapafúrdio por quem negociou e ajudou a implementar o Acordo Ortográfico (AO) à revelia de todos os pareceres solicitados, e nunca é demais referir este gesto impostor que teima em repetir-se. Apregoou-se: “A língua evolui. Já não se escreve ou fala como no tempo de Camões”. Tal desorientação só pode suscitar uma gargalhada. No mesmo sentido, parafraseio o que afirmou um político de referência, ao defender o AO e confundindo ortografia com léxico: dantes também não existia “bué” no vocabulário português e agora é comummente usado! Só faltou inventar que “bué” fora resultado de um decreto, o que efectivamente aconteceu com o AO.

Num folheto turístico francês, actual, sobre o “Arco do Triunfo” e “O Soldado Desconhecido”, traduzido, como se indica, em “Português” (a bandeira confirma-o), leio que Napoleão, na noite da batalha de Austerlitz, disse aos seus soldados: […] Soldados, estou satisfeito com vocês […] Eu vou levar vocês de volta à França; lá, vocês receberão as minhas mais sinceras solicitudes […]”. Surgem depois as guerras napoleônicas e ainda a cerimônia da chegada do Soldado ou o planejamento final da praça. Alunos do 4.º ano, perante o exemplo, souberam dizer-me como deveria ficar: “satisfeito convosco”, “vou levar-vos”, “lá, receberão”, substituindo também os acentos circunflexos.

Aceito que o Brasil defenda a designação de “língua brasileira”. Que assim seja, mas libertem-nos do sufoco que é aceitar como “português” a tradução transcrita. Também à conta do AO, e pesquisando no Google, onde anteriormente aparecia a opção “português de Portugal”, temos agora a opção “pesquisar páginas em português” e daí o aparecimento de inúmeros resultados de busca terminados em com.br, antes dos sites portugueses, o que não é de admirar pelo facto de os brasileiros serem perto de 200 milhões, número que, numa óptica colonialista, serviu de argumento, descarado e absurdo, para a implementação do AO.

No livro de “Estudo do Meio” (4.º ano), a propósito de Actividades Económicas, a minha neta leu: “setor primário”, fechando a vogal inicial para logo de seguida dizer, gozando: “Setor? Então é um professor?”. Aproveitei para pôr o “c” que faltava, e que abre o som da vogal, explicando-lhe que é o correcto. Na verdade, o AO definiu a dupla grafia: setor para o Brasil, sector para Portugal, mas muitos, na habitual bajulação ou indiferença, teimam no “setor” e afins. Mas não confessou também o Primeiro-Ministro, perante o presidente Lula da Silva, e, implicando-nos, que “Temos pena de não falarmos com o vosso sotaque.” (sic)?

A demonstrar ainda quanto este AO veio confundir e equivocar, prejudicando o ensino do Português, eis como reagiu uma aluna do 1.º ciclo, perante uma actividade intitulada “Para para ler”: instintivamente colocou um acento agudo no verbo parar, pensando que a professora se enganara, vindo depois a saber que a professora o fizera porque era obrigada a cumprir o AO. Como esta professora, milhares de colegas.

Sabendo que o professor João Costa, na preparação da sua demagógica intervenção, na AR, se entreteve a contar o número de vezes que Joana Mortágua dissera “professores”, referindo apenas 1 vez “alunos”, regozijo-me com o facto de ter evidenciado o caos que os alunos, e também os professores, sentem no ensino do Português. Preocupá-lo-á a situação, senhor Ministro?

Lamentavelmente, nem Luís de Camões nem a Língua Portuguesa são privilegiados por quem de direito; no entanto, estão presentes em muitos discursos oficiais que se caracterizam pelo vazio e pela hipocrisia, com destaque para o 10 de Junho. E a terminar, um extracto de um texto de Vasco Graça Moura que em boa hora me foi enviado por uma colega e amiga, de Lagos: “(...) o que parece preocupante é o facto de cada vez menos haver em Portugal qualquer espécie de interesse por Camões e por aquilo que ele representa. O nome do autor de Os Lusíadas tende a ser apenas a marca distintiva de um feriado, ambíguo luxo nos tempos que correm, e pouco mais. As questões da identidade começam por estar relacionadas com a língua materna e esta deve a Camões a sua dimensão moderna. Mas estão à vista as consequências que, para a identidade, decorrem do actual estado de coisas: a língua materna está cada vez mais deteriorada (…). Nem sabemos pronunciá-la, nem sabemos escrevê-la ou falá-la com um mínimo de correcção. E nem vale a pena falar da situação catastrófica que virá a ser gerada pelo Acordo Ortográfico se este algum dia se aplicar (...). Vivemos numa época de apoucamento da língua, de empobrecimento do vocabulário, de aviltamento de todas as regras de gramática. (…) Vêmo-la subordinar-se servilmente ao facilitismo e à tecnologia, quando devia contribuir para uma estabilização dos seus paradigmas próprios, procurando equilíbrios permanentes com as tendências que são sinal dos tempos. (...) A língua de Camões está irreconhecível. Se ele voltasse ao mundo, decerto pensaria em rasgar a sua obra. Deixámos de ser dignos dela.” (In DN de 09.06.2010 - "A língua de Camões?")

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