O alegado excesso de médicos em Portugal
A atitude da Agência A3ES revela o enviesamento ideológico de uma esquerda que tudo tem feito para impedir ou diminuir a influência dos hospitais privados na assistência aos doentes e no ensino.
É comum dizer que Portugal tem médicos em excesso e que muitos licenciados, por vezes doutorados, emigram por não encontrarem contractos compatíveis com o currículo acumulado. Muitos comentadores, com literacia insuficiente, comparam o número de médicos inscritos na Ordem dos Médicos (4,6 a 5,3 por 1000 habitantes) com o número dado a conhecer pela OCDE relativa a 34 países (3,5 médicos por 1000 habitantes). Será, assim, excessivo abrir novas escolas médicas em Portugal, nomeadamente privadas?
A precipitação dos ditos comentadores começa na ignorância da comparação, já que a contagem em Portugal diz respeito aos médicos inscritos na Ordem, enquanto o que reporta à OCDE é o número de médicos que efectivamente estão no activo.
É hábito, entre nós, não haver notificação por parte da Ordem dos Médicos de reformados, falecidos ou emigrados, o que elimina qualquer veracidade na contagem dos médicos portugueses. A OCDE, reconhecendo os factos, sugere que os números para Portugal possam estar inflacionados em cerca de 30%, tendo como consequência imediata a passagem do 5.º lugar de Portugal em número de médicos por 1000 habitantes para o 13.º lugar, em linha com a média dos países da OCDE (3,7-3,5, respectivamente).
Acresce analisar a necessidade da oferta médica (qualidade, idade e formação dos médicos) e a procura (características da população, predominância do grupo etário e condições de vida). E considere-se a produtividade do sistema de saúde, que poderá estar dependente ou não, de uma delegação de tarefas mais eficiente.
A formação de um médico, incluindo o mestrado integrado e o internato de especialidade, demora 10 a 13 anos, tendo este tempo grande importância na aplicabilidade de qualquer mudança nas regras do sistema de saúde.
Há várias formas de sustentar o que escrevi, e o futuro que prevejo que, continuando sem mudanças, será cinzento na oferta e ingrato na procura
Recorrendo às estatísticas da Ordem dos Médicos de 31 de Dezembro de 2022, constatamos que, com 31 anos há 10334 médicos inscritos, sendo 10259 não especialistas, em linha com o tempo necessário para adquirir a especialidade.
Estes números contrastam com os transcritos para os médicos com 65 anos, ou idade superior (18570 sendo 2601 não especialistas).
Anote-se a diferença no número de médicos em fim de vida profissional e os que estão a entrar no mercado de trabalho (8236). Entre o final de 2018 e o de 2022, há um aumento significativo dos médicos mais velhos, sendo de 259 em 2018 e de 5227 em 2022.
A classe médica está a envelhecer: metade dos especialistas têm mais de 61 anos e, se a estes juntarmos os que têm subespecialidades ou outras competências, 20% dos médicos no activo têm mais de 60 anos. Em todos os distritos do país, o número de médicos com mais de 65 anos ultrapassa os que têm menos de 31 anos, agravando-se o fosso todos os anos, como prova o descrito atrás, na comparação entre 2018 e 2022.
Beja que, neste momento, tem 2,9 médicos por 1000 habitantes, no final de 2022 tinha inscritos na Ordem 42 médicos com 31 ou menos anos, e 123 com mais de 65 anos. Lisboa, como exemplo de distrito com excesso de médicos, no final de 2022 tinha inscritos na Ordem 2986 médicos com menos de 31 anos, sendo de 5408 o número de médicos com 65 ou mais anos.
É hábito falar de assimetrias regionais, parâmetro usado por quem pensa haver um número excessivo de médicos em Portugal. Contudo, convém ter em conta que o número de médicos por mil habitantes é sensivelmente o mesmo em Faro, Viana do Castelo ou Viseu.
Assim, apesar de vermos aumentar o número de médicos formados todos os anos, é bastante claro que são insuficientes para compensar os que estão de saída.
Medicina geral e familiar, pediatria, ginecologia e obstetrícia e cirurgia geral são as especialidades que concentram o maior número de médicos acima dos 65 anos, sendo bem fácil de constatar que um milhão e seiscentos mil portugueses não têm médico de família, que os serviços de pediatria e neonatologia encerram em certos dias no Algarve, e que as urgências de ginecologia e obstetrícia encerram em certos hospitais aos fins-de-semana.
Não basta abrir vagas para médicos de família, como recentemente propôs o ministro da Saúde, tendo em conta que, nos últimos anos, 40% das vagas abertas ficaram por preencher.
O Serviço Nacional de Saúde tem de ser atractivo, o que não acontece com os actuais salários, dificuldade na progressão da carreira, instalações incómodas e horas extraordinárias não pagas.
Assim, parece estar justificado o número de vagas propostas e não preenchidas nos hospitais públicos, e a fuga para os hospitais privados, onde uma melhor compreensão das necessidades e direitos dos médicos parece existir.
No ensino, a formação de médicos em Portugal teve exclusividade no sistema público até há bem pouco tempo. A falta de acreditação do ensino superior, por parte da A3ES, das escolas médicas privadas tem impedido a melhoria dos serviços médicos prestados, limitando a formação de médicos, impedindo também um aumento do número de vagas que poderiam ser abertas para diferenciação e formação de jovens médicos nos hospitais privados.
Existe uma desconfiança no que diz respeito à actuação do sector privado na área científica do ensino superior. Contudo, é no sector privado que muitos médicos mais velhos trabalham, acrescentando experiência e sabedoria que adquiriram na sua longa carreira profissional.
A atitude da Agência A3ES revela um enviesamento ideológico de uma esquerda que tudo tem feito para impedir ou diminuir a influência dos hospitais privados na assistência aos doentes e no ensino. Limitando o número de médicos em formação e de vagas para a especialidade, a A3ES está a contribuir para um futuro sombrio nos cuidados de saúde dos portugueses, sendo certo que estes mereciam um comportamento mais patriótico.
Sendo bastante claro que há necessidade de formar novos médicos, que há numerus clausus no acesso às escolas médicas públicas, que o ensino há muito deixou de ser centrado em aulas teóricas, passando para uma prática progressivamente mais exigente, que qualquer alteração no sistema de ensino agora tomada só terá efeito dentro de vários anos, é incompreensível que a ideologia, concentrada numa agência de acreditação, seja mais respeitada do que a necessidade de saúde e cuidados médicos da população portuguesa.