Ler devagar

José Pinho recebeu por estes dias a medalha de mérito cultural da cidade de Lisboa e a Ordem Militar de Sant’Iago da Espada — Ciências, Letras e Artes.

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José Pinho, na Ler Devagar Rui Gaudêncio
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Estavam a meio os anos 1990 e a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa abria a Especialização em Técnicas Editoriais. Depois de várias selecções e entrevistas, formou-se um grupo de alunos a que tivemos a fortuna de pertencer.

Tinham quase todos experiência editorial, muita. António Baptista Lopes (Âncora Editora), Carlos Abreu (Biblioteca Nacional), Carlos Loures (Edições Alfa), Fernando Mão-de-Ferro (Edições Colibri), José Carlos Alfaro (Quimera), Maria Filipe (Colóquio Letras, Fundação Gulbenkian), Paula Ginja (Plátano Editora), Vasco Silva (Ática), entre outros. E José Pinho, que na altura trabalhava em marketing.

Os mais novos questionavam-se sobre o que faziam ali aquelas pessoas que parecia já saberem tudo sobre edição, havendo muito conhecimento transmitido no sentido inverso ao que se espera numa sala regida por um professor. No entanto, a partilha era sã, sem reservas e divertida. Tão divertida que não podíamos ter por parceiros de carteira José Pinho ou António Baptista Lopes. Fomos algumas vezes chamados à atenção como crianças malcomportadas.

Numa dessas conversas animadas dentro e fora das salas de aula falou-se em “ler devagar” — aquele momento em que o leitor começa a desacelerar a leitura e a “fazer render” o livro porque não quer que ele chegue ao fim. Quem lê bastante sabe do que se trata. Logo alguém sugeriu ser a frase um bom nome para uma livraria. Salvo erro, José Carlos Alfaro. A que logo José Pinho acrescentou que podia ter uma revista com o título Rapidinha.

A Ler Devagar haveria de se materializar anos depois, no Bairro Alto, em Lisboa. Um espaço para estacionamento transformado num lugar de livros, leitura, encontros, cultura, festa. Chegou a estar na Fábrica de Braço de Prata e fixou-se depois e até agora na LxFactory, sempre em Lisboa.

Era assim o José Pinho, concretizava ideias tão inesperadas como vender livros na mercearia ou na Igreja, fazendo nascer em Óbidos o Festival Literário Internacional (Folio) e outros, como o Latitudes e o Lisboa 5L.

Cedo nos desafiou para criar uma livraria especializada em livros para crianças, que ainda não havia por cá. Felizmente, Mafalda Milhões seguiu-o e, há mais de 20 anos, abriu a Bichinho de Conto.

Era assim o José Pinho, conseguia mobilizar pessoas, “enganar”, dizia ele, como repetiu na homenagem de entrega da medalha de mérito cultural da cidade de Lisboa, a 8 de Maio, na sede do município. Um salão nobre cheio de amigos, colaboradores e admiradores, a quem agradeceu participarem nas suas “aventuras”.

Outra homenagem mais discreta e a que assistimos por acaso aconteceu dois dias depois, durante uma visita ao hospital. Marcelo Rebelo de Sousa estava no quarto de José Pinho com a militar que normalmente o acompanha, Fátima Costa, a condecorá-lo com a Ordem Militar de Sant’Iago da Espada — Ciências, Letras e Artes.

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Ordem Militar de Sant’Iago da Espada — Ciências, Letras e Artes, atribuída ao editor e livreiro, por Marcelo Rebelo de Sousa, a 10 de Maio DR

O Presidente da República fez questão de lhe colocar o colar e assim serem fotografados, entre duas camas de hospital. “Só atribuo esta comenda a pessoas mesmo importantes”, disse.

Pinho contou depois, bem-humorado: “Eu estava quase a dormir e vejo um tipo entrar pelo quarto adentro com uma mulher fardada. Pensei: ‘Deram-me morfina a mais. Devo estar a alucinar’.” Mas era mesmo verdade. “Depois é que percebi que era o Marcelo. Não achas isto um bocado exagerado?” Não.

Era assim o José Pinho, divertido e algo modesto, eventualmente sem ter bem a noção do alcance dos seus projectos na vida de muitas pessoas.

“Tenho de me aguentar mais uns dias. Não posso morrer antes de dia 16 de Junho. Estamos a prever inaugurar o Centro Cultural e Social do Bairro Alto nessa data.” Mais uma das suas ideias que a todos pareciam mirabolantes. E a mesma vontade, os mesmos olhos brilhantes, dir-se-ia de miúdo, de quem tem sempre ânimo para o passo seguinte.

Vai fazer falta a muita gente, vai fazer falta a Lisboa, a Óbidos e, sobretudo, ao sector editorial e livreiro.

Para onde quer que tenha ido depois desta triste data, é certo que vai iniciar algures uma revolução, sempre com livros por perto e leituras em volta.

Aos que por aqui continuam mais um pouco, resta-nos prosseguir com os seus múltiplos projectos, acarinhá-los, frequentar livrarias, de preferência as independentes, e ler, ler, ler. Devagar.

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