Ajudar um é mais fácil do que 10 milhões
Contar uma história tem um poder enormíssimo, mas se as atenções, ajudas e donativos forem apenas usados em benefício de um, é batota emocional, e é perverso.
Falando da mesma quantia. Certamente que este fenómeno está bem estudado por quem se dedica à compreensão da mente humana, mas não pára de me surpreender. A crueldade do legado assassino de milhões por Estaline é uma vergonha para a história da humanidade, mas a sua famosa citação "uma única morte é uma tragédia, um milhão de mortes é uma estatística" é aplicada sem vergonha por todos nós, quase sem excepções. Nós não os matamos, mas deixamo-los morrer. Existe uma diferença mas é ténue, activamente não os vamos lá matar, mas também não nos importamos muito que eles morram ou sofram o indizível.
Quando 12 rapazes ficaram encurralados por água em grutas do norte da Tailândia foram movidos milhões e milhões de euros, directa e indiretamente (com o que as TV gastaram para ter lá um jornalista à porta da gruta para não dizer “nada”), porquê? Porque as pessoas estavam preocupadas com a vida de 12 crianças de um país muito longínquo? Não. As pessoas agarraram-se emocionalmente à história, porque o enredo era espetacular, porque era inusitado, porque era limitado no tempo, porque de alguma forma sentimos que nos podia acontecer a nós, e porque a solução era palpável.
Sensivelmente um ano mais tarde, o Programa Alimentar Mundial ganha o Prémio Nobel da Paz. Eu tentei trazer para aqui mais do que a notícia, a realidade que tem que ser combatida, mas o facto de quase 100 milhões de pessoas terem sido salvas em cerca de 80 países, num ano, foi apenas notícia de rodapé, e a atenção da opinião pública que foi suscitada, que é sempre proporcional aos donativos, foi quase nula – e não digo nula para não desmerecer os corajosos que tentam ir contra a corrente da perversão dos mecanismos da empatia da mente humana.
Empatia todos temos e é um sentimento poderosíssimo, disso não tenho dúvidas, mas nem todos reflectimos sobre a desproporcionalidade, a desigualdade e até a desonestidade sobre a qual funciona a nossa empatia. Vejamos. Aqui há tempos estive envolvido numa história que me causa enormes dilemas éticos. Foi-me apresentada a história da Fernanda que é duríssima emocionalmente (a história é pública ): violência doméstica, dramas familiares, crianças e adolescentes com tentativas de suicídio, e no essencial, tudo por não terem uma casa.
Escrevi a história o melhor que soube e criei um crowdfunding, com o objectivo de chegar aos 50.000 euros para uma casa para a Fernanda e os seus três filhos. Em três dias tínhamos chegado aos 25.000 euros. Incrível, eu estava em êxtase por ter chegado a tanto. Depois, pedi ajuda ao Nuno Markl, apresentando-lhe o que tinha escrito e feito. Com a bondade ímpar que o caracteriza, levou a história para as manhãs da Comercial (sem eu saber). Passadas uma hora e pico, em directo, celebrava-se a conquista do objectivo com uivos de alegria. E no final dessa manhã ultrapassou-se os 75.000 euros.
O que é que é perverso na nossa empatia, e os porquês dos meus dilemas éticos? É que se fosse pedido o mesmo montante a dividir por 10 famílias de mães solteiras com crianças em risco, não chegaria nem a 1% do valor arrecadado para a Fernanda. Para além desta constatação que já carrego há muito, o que me doeu horrores foi a quantidade de mensagens de “Fernandas” que eu recebi a pedir-me ajuda, e que tive de fingir que não li, mas li, e senti, e sofri com a sensação de impotência perante tanto sofrimento de mães desesperadas sem condições de vida dignas para os seus filhos.
Então, o que fazer?
Para conseguir ser mais justo e proporcional às necessidades, eu decido apoiar as organizações que estão no terreno e têm reflexões maturadas sobre os beneficiários a quem se dedicam. E também nessa medida construí uma equipa com uma linha de pensamento que traz a todos os portugueses as coisas mais bonitas que se fazem por aí, e que se chama Prémios Coração e o Mundo. Estou há meses com a minha equipa a trabalhar neste assunto, e ainda não consegui mais do que 2500 euros para mais de 150 ONG, não contando com as promessas por cumprir e as palmadinhas nas costas. Portanto, eu, em meses de trabalho, consegui 10 vezes menos para ajudar dezenas de ONG que ajudam milhares de pessoas, do que em três dias, para ajudar “apenas” uma família. É perverso, não é?
Hoje, 28 de Maio, é o Dia Mundial da Fome. Faço uma pesquisa no Google e não encontro uma única notícia sobre isto em Portugal. Nem uma. E isto tem de ser notícia, porra! Até porque os números são alarmantes e estão-se a agravar. São 828 milhões de pessoas no planeta que vão dormir com fome, 10% da população mundial. Das quais dois terços são mulheres e 80% vivem em áreas altamente afectadas pelas alterações climáticas. Em 2017 este número estava abaixo dos 580 milhões, neste últimos anos a subida tem sido a pique. Segundo a FAO (Organização para a Alimentação e Agricultura da ONU), este agravamento brutal deve-se essencialmente a quatro factores: alterações climáticas; choques na economia; guerra; e ainda as consequências da pandemia.
Quando alguma família pede dinheiro para tratamentos oncológicos de uma criança consegue centenas de milhares de euros nuns dias. Mesmo que o dito tratamento no estrangeiro não tenha qualquer validade científica, as pessoas vinculam-se ao desespero dos pais, nem que seja para eles poderem dizer que tentaram tudo. Mas se se pedir para todas as crianças com doenças oncológicas e suas famílias, não se alcança grande coisa.
Contar uma história tem um poder enormíssimo, mas se as atenções, ajudas e donativos forem apenas usados em benefício de um, é batota emocional, e é perverso. Só é justo e humano se essa história for usada em benefício de todas as que representa, e se for dada a importância à proporção dos problemas da humanidade. Ou há vidas que valem mais do que outras?
Se não tivermos em conta estas reflexões, se não usarmos a nossa empatia em prol de algo maior, se não organizarmos bem as nossas emoções quando as transformamos em acções, ajudar um vai ser sempre mais fácil do que ajudar 10 milhões, e isso é cruel e maldoso, porque estarão a dar razão à célebre e desumana frase de Estaline.
As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel da Mota a favor dos Médicos sem Fronteiras