Francisco Louçã: Costa “decidiu romper bloco central” com o Presidente da República

Antigo líder do Bloco de Esquerda e ex-conselheiro de Estado acusa o Presidente da República de estar à espera que “o Governo se vá desgastando” antes de convocar eleições antecipadas.

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Francisco Louçã sobre crise política: "A maioria absoluta destrói um partido" Susana Madureira Martins (Renascença), Ana Bacelar Begonha
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O fundador do Bloco de Esquerda (BE) Francisco Louçã acusa o primeiro-ministro de ter rompido a "aliança" com o Presidente da República ao manter o ministro das Infra-Estruturas no cargo para provocar eleições antecipadas ou desgastar Marcelo Rebelo de Sousa.

Em entrevista ao Hora da Verdade do PÚBLICO/Renascença, o ex-porta-voz do partido admite que um cenário de eleições antecipadas é agora mais "provável" e que João Galamba se tornou "irremodelável", mas prevê que o Presidente esperará "que o Governo se vá desgastando". Embora considere que António Costa "carregou sobre as responsabilidades" de Pedro Nuno Santos para abrir caminho a outros sucessores à liderança do PS, atribui a crise política à maioria absoluta que, diz, "destrói um partido".

O BE deve ou está a preparar-se para eleições antecipadas? Disse, recentemente, em entrevista à Lusa, que este Governo não chega a 2026.
Estamos a assistir a um processo entre o extravagante e o patético. Portugal está a fazer um zapping todos os dias entre Cavaco Silva, que se diz imitar [Mário] Soares, e António Costa, que lhe responde imitando Cavaco Silva: "Deixem-nos trabalhar." No meio de tudo isto, percebemos que há um dado novo: que o Governo escolheu fazer um confronto com o Presidente. A aliança entre os dois poderes era o bloco central, que ocupava o centro da política portuguesa e que tinha ramificações à direita e ao centro-esquerda. O Governo decidiu romper isso.

A razão por que o faz foi interpretada de formas psicologizantes: "António Costa quer dar uma bofetada em Marcelo Rebelo de Sousa." Tenho muitas dúvidas sobre isso. Acredito antes noutra explicação: o Governo entende que tem o quinto milagre de Fátima à sua disposição, que é o PRR [Plano de Recuperação e Resiliência]. E que o PRR vai refazer o país, fazer correr rios de leite e de mel que vão chegar às pessoas e deslumbrá-las com a mudança da sua vida. É falso. Se esse é o raciocínio do Governo, caminha para o precipício.

António Costa cometeu um erro político ao afrontar Marcelo Rebelo de Sousa?
Cometeu um erro enorme ao retirar o seu ponto de apoio, ao criar um ponto de crispação que lhe torna mais difícil continuar a imperar no campo do centro, que era o espaço político onde estabeleceu o medo que lhe permitiu a maioria absoluta. E isso torna muito mais provável do que até agora que possa haver eleições antes de 2026.

A resposta do Presidente tem-lhe parecido razoável?
Exactamente o que esperava. Se alguém pensava que, por causa de um clicar dos dedos, Marcelo ia demitir o Governo ou dissolver a Assembleia da República e permitir uma campanha de António Costa vitimizado pela conspiração da direita, é porque não percebe bem como se movem as forças políticas em Portugal. Marcelo esperará todo o tempo necessário para que o Governo se vá desgastando. E, com franqueza, para que haja esse fenómeno de apodrecimento, de degradação.

O BE tem defendido a demissão do ministro das Infra-Estruturas. Francisco Louçã também?
O ministro das Infra-Estruturas fez muito bem em apresentar a demissão, exactamente pela razão que ele escreveu e que Marcelo depois repetiu. É que, podendo-se admitir que ele não tivesse nenhuma responsabilidade directa nos incidentes e na forma como eles explodiram, a tutela política daquele ministério e a escolha das pessoas e a condução do que elas fazem é sempre do ministro. O ministro devia ter saído.

Que António Costa não o tenha querido pode ser interpretável como uma vontade de criar um braço-de-ferro com o Presidente na expectativa de provocar um incidente eleitoral ou um tempo de desgaste da Presidência. Se é assim, fracassou em ambos. Mas criou uma situação que é única. Tendo recusado a saída do ministro, ele passou a ser o único ministro 'irremodelável' do Governo. Todos podem sair. Galamba não pode. Porque é o braço-de-ferro com o Presidente. Ficou preso ao seu lugar.

Se Galamba for demitido, provavelmente António Costa terá também o seu destino traçado. Ou crê que o Presidente não pensará isso?
O Presidente não toma decisões sobre a dissolução da Assembleia da República em função da estabilidade ou da substituição de um ministro ou de outro. Não é assim que a República funciona, na base de jogos escondidos. A avaliação de uma eleição antecipada tem que decorrer de motivos grandes e imperativos para a República e não de ajustes de contas entre pessoas zangadas.

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"Tendo recusado a saída do ministro, ele [Galamba] passou a ser o único ministro 'irremodelável' do Governo", diz Louçã. Daniel Rocha

Continuamos no regular funcionamento das instituições?
O Tribunal Constitucional está de pé, o Governo emite decretos, são tomadas decisões, a República não está em perigo, a República não está a cair. Está magoada, está a sofrer, e por razões que não têm nada a ver, ou muito pouco a ver, com as atribulações de um ministro. Muitas pessoas interpretarão isto como uma espécie de criancice a substituir a responsabilização política de quem devia ter um sentido da sua função acima de qualquer trica. Não faltam razões para que se queira mudar de Governo, mas essas razões são o SNS [Serviço Nacional de Saúde], a política de habitação, as pensões baixas, haver mais de um milhão de pessoas com 554 euros por mês.

Alinha pela opinião de Cavaco Silva de que António Costa governa com base na mentira e que lidera uma “oligarquia que se considera dona do Estado”?
Todos os governos que conheço, quando têm maioria absoluta, se consideram donos do Estado. Claro que um exemplo do manual de ciência política será sempre a maioria de Cavaco Silva. Cavaco Silva não ia ao Parlamento discutir com os parlamentares. Ia lá uma vez por ano no debate do estado da nação e no debate do Orçamento. Não havia debates regulares. Chegou a ser discutido os corredores em que os jornalistas não poderiam circular dentro do Parlamento. De apropriação do Estado ficamos bem conversados.

Essa tensão existe em todas as maiorias absolutas. O problema é como é que a democracia lhe pode responder. Há uma actividade parlamentar mais exigente, creio que da comunicação social também, que nos permite perceber melhor os casos e problemas reais do país. A democracia é mais exigente. Não quer dizer que o poder absoluto não seja sempre uma tentativa de ocultação e de mentira.

Esta sucessão de polémicas no Governo tem sido lida como resultado das lutas internas pela liderança do PS. Partilha dessa opinião?
É claro que havia uma disputa forte entre António Costa e Pedro Nuno Santos e que, depois da demissão de Pedro Nuno Santos, António Costa aproveitou todas as oportunidades para carregar sobre as responsabilidades do ex-ministro e que, com isso, quer abrir caminho aos seus candidatos ou candidatas putativas para a liderança do PS. Mas estamos longe do momento em que António Costa aceite ou determine essa transição, a não haver eleições antecipadas ou a havê-las a curto prazo.

Acho que é o sintoma do que é a maioria absoluta: a promoção do carreirismo, a ideia do poder absoluto, de que os governantes não são 'inquiríveis', de que não têm que prestar contas nem pelo que fazem, nem pelo que deixam de fazer. A maioria absoluta destrói um partido.

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