Eduardo Lima da Costa: “Prevemos chegar às mil cirurgias para tratamento da obesidade este ano”
Director do Centro de Responsabilidade Integrada de Obesidade do Hospital de São João diz que a cirurgia nunca irá resolver o problema da obesidade da população. É preciso apostar na prevenção.
Em 2030, o número de mortes devido à alimentação inadequada deve ultrapassar o das provocadas pelo tabaco em Portugal, que gasta 10% do total destinado à saúde no tratamento das doenças derivadas do excesso de peso. As projecções para 2030 indicam também que, do total de mortes previstas, a percentagem atribuível a erros alimentares será de 13,8% e em relação a excesso de peso e obesidade será 12%, “ultrapassando o tabagismo, cuja percentagem projectada de óbitos atribuível será de 11,1%”.
No Dia Nacional da Luta Contra a Obesidade, Eduardo Lima da Costa, director do Centro de Responsabilidade Integrada (CRI) de Obesidade no Hospital de São João, no Porto — o maior centro no país e um dos maiores da Europa em termos de cirurgias, reduzidas taxas de complicações e outros resultados — diz que o CRI está a operar cada vez mais doentes, mas as listas de espera não diminuem. O CRI passou de realizar cerca de 300 intervenções anuais, em 2019, para 850, em 2022 — e este ano é esperado que cheguem às mil. O número de consultas externas também tem estado sempre a subir, passando de à volta de 9000, em 2019, para 16 mil, em 2022 (e este ano deverão chegar às 19 mil).
Para o cirurgião e director, é preciso reforçar a luta contra a obesidade nos adultos, com medidas como a taxa do açúcar, e incentivar, por exemplo, as empresas a terem políticas de promoção de saúde dos seus funcionários. “E também é preciso que se deixe de encarar a obesidade de uma forma até um bocadinho discriminatória. Muitas vezes entendemos que o adulto obeso é responsável pelo que lhe aconteceu e que a obesidade se deve apenas a alterações comportamentais, mas o problema é muito mais complexo. Há factores genéticos, de pressão social e do próprio metabolismo da pessoa nesta equação”, diz.
Porque acha que continuamos a desvalorizar a obesidade?
Por puro desconhecimento. A obesidade é uma doença crónica, está associada a mais de 200 outras doenças cardiovasculares, auto-imunes, metabólicas, oncológicas, que diminuem não só a qualidade de vida do doente, mas também o número de anos de vida. É uma doença que é prevenível...
Não podemos olhar para as pessoas com excesso de peso de uma forma estigmatizante e temos de parar de lhes atribuir responsabilidades que, de facto, não têm.
A Ordem dos Nutricionistas tem vindo a defender a adopção da rotulagem nutricional simplificada o mais rápido possível, acompanhada de uma forte campanha educativa. Este tipo de medidas, juntamente com a restrição da publicidade a alimentos prejudiciais, tem sido suficiente?
Acho que essas medidas são importantes e urgentes e devem ser inseridas num plano de ataque à obesidade. Sozinhas, não vão ser suficientes, mas é um princípio. Precisamos de medidas como a taxa do açúcar, que ajudou a que se conseguissem resultados na prevenção.
Muito importante também é fomentar a prática desportiva. Como se fomentou nas escolas, porque não fomentar em ambiente laboral, incentivando as empresas a terem políticas de promoção de saúde dos seus funcionários? Isso vai diminuir o absentismo e aumentar a produtividade dos trabalhadores.
O que explica, tendo em conta a quantidade de informação a que grande parte da população tem hoje acesso, que o problema continue a crescer?
Focando-nos apenas na alimentação, comer saudavelmente é, normalmente, mais dispendioso. Além disso, há uma parte da população que trabalha tanto e que, depois, ainda é responsável por toda a actividade familiar, e depois não tem tempo livre para a prática desportiva, que acarreta custos também. Não é por acaso que, na população feminina, a obesidade está mais relacionado com classes socioeconómicas um bocadinho mais desfavorecidas.
Também é preciso lembrar que muitos alimentos menos saudáveis e mais ricos em hidratos de carbono simples são mais baratos. Se antigamente quem tinha pouco dinheiro alimentava-se mal em termos de quantidade, agora quem tem pouco dinheiro alimenta-se mal em termos de qualidade.
As crianças, em particular, trocaram muitas brincadeiras ao ar livre por actividades mais sedentárias. No entanto, e pela primeira vez, começamos a ver alguma luz ao fundo do túnel no que toca aos mais novos.
Tem notado uma diminuição da idade dos doentes que necessitam de ser operados?
Sim, temos notado uma diminuição da idade, mas é algo que queremos que aconteça. Interessa-nos fazer as intervenções o mais precocemente possível. Dessa forma, os doentes são expostos durante menos anos a factores de risco, o que tem uma relevância crescente em termos de risco cardiovascular, doenças metabólicas, doenças auto-imunes e doenças oncológicas. Cada vez mais se fala na relação entre o cancro e a obesidade. No entanto, há que sublinhar que não oferecemos só tratamento cirúrgico. Existe, no hospital, a opção de tratamento farmacológico, que é bastante eficaz, e também fazemos tratamento endoscópico. Temos as três valências para tratamento médico.
Quantos doentes operam, em média, por ano?
A criação do CRI fez crescer, e muito, o número de cirurgias e doentes tratados no Hospital de São João. Para ter uma ideia, partimos de qualquer coisa como 270 cirurgias por ano, em 2018. O ano passado fizemos mais de 850 e temos previsto este ano fazer cerca de mil cirurgias.
Isto é um crescimento muito grande em quatro anos. No Reino Unido, são feitas 10 mil cirurgias por ano. Se este ano nós fizermos mil cirurgias, serão 10% das que são feitas no Reino Unido, que tem uma população muito maior. Ao contrário de outros serviços, que têm uma lista grande de objectivos, o nosso único propósito é aumentar o número de doentes tratados por obesidade.
E até chegaram a operar ao domingo...
Sim. Tomámos essa decisão porque tínhamos e temos uma lista de inscritos para cirurgia muito grande e com doentes à espera bem mais tempo do que o hospital definiu como razoável, daí termos optado por operar mais aos fins-de-semana. Neste momento, os doentes ainda têm de esperar muito tempo para serem operados. Temos essa consciência e estamos a fazer o melhor que conseguimos.
Fizemos mais de 70 cirurgias ao domingo, não é um número simbólico. Agora já não operamos ao domingo, mas reforçamos o serviço com duas salas aos sábados e duas salas à sexta-feira à tarde.
Mencionou que o CRI passou de operar cerca de 200 doentes para operar quase mil. Isto mostra que tem havido um aumento do número de doentes que precisam de cirurgia ou é apenas uma recuperação das listas de espera?
Trata-se, apenas, de uma maior capacidade de resposta. E, mesmo assim, temos a noção de que só conseguimos ajudar uma parte pequena de todos os candidatos que existem. Notamos, com alguma frustração, que aumentamos em três ou quatro vezes a nossa capacidade de resposta e de intervenção, mas o nosso tempo de espera mantém-se elevado.
No panorama europeu, somos dos países que mais e melhor operam. É preciso reconhecer que o SNS apostou e reforçou a sua capacidade de resposta no tratamento da obesidade e isso é muito bom, mas isso tem que ser acompanhado de um esforço na promoção da saúde, para a pressão começar a diminuir.
Sentimos que estamos a operar cada vez mais doentes e cada vez mais doentes nos aparecem. Continuamos a ter uma procura que não nos deixa atingir os tempos de resposta que gostaríamos de atingir. Por isso, é preciso que, a montante, haja um esforço de prevenção da obesidade nos adultos. E também é preciso que se deixe de encarar a obesidade de uma forma até um bocadinho discriminatória. Muitas vezes entendemos que o adulto obeso é responsável pelo que lhe aconteceu e que a obesidade se deve apenas a alterações comportamentais, mas o problema é muito mais complexo. Há factores genéticos, de pressão social e do próprio metabolismo da pessoa nesta equação.
Não é verdade que as pessoas sejam obesas porque querem e porque têm comportamentos que não são adequados. Temos de deixar de ter uma atitude de responsabilização que não é justa e passar a ter uma atitude de prevenção para conseguirmos diminuir a pressão sobre os os serviços que fazem tratamento numa fase mais final da doença.
Qual é o perfil dos doentes que recebem?
A obesidade atinge toda a população, por isso tratamos doentes de todas as faixas etárias, idealmente até aos 65 anos, mas em alguns casos podemos estender a depois dessa idade. Inicialmente, recebemos muito mais mulheres do que homens, mas, nos últimos anos, há um peso crescente do sexo masculino. É verdade que a nossa sociedade tolera mais a obesidade nos homens do que nas mulheres, mas, nos últimos anos, os homens começaram a perceber que o excesso de peso tem impacto na sua qualidade de vida.
Estimamos que uma em cada cinco pessoas tem um tipo de obesidade em que haverá uma eventual indicação cirúrgica.
Temos a consciência de que o tratamento cirúrgico nunca vai resolver o problema da obesidade e de excesso de peso da população. A cirurgia é indicada para situações em que há uma clara perda de qualidade de vida. E a cirurgia é, de facto, para qualquer tipo de obesidade, a forma mais eficaz e sustentada no tempo de tratar o excesso de peso e a obesidade.
Nós tratamos um grupo específico de doentes em que a dieta, o exercício físico e a medicação não são suficientes para mudanças no controlo do peso.
A situação piorou com a pandemia? O tratamento da obesidade ficou para segundo ou terceiro plano?
Em relação ao serviço, durante os anos de pandemia, não crescemos ao ritmo a que gostaríamos, mas, mesmo assim, houve algum progresso favorável na nossa resposta. No que toca aos doentes, aconteceram duas coisas: houve alguns doentes mais inactivos que aumentaram o peso, mas também houve uma consciencialização maior quanto à qualidade de vida, à importância de ajustar alguns valores e repensar as suas prioridades. Tenho vários doentes que passaram a valorizar mais o exercício físico e a fazer regularmente exercício físico, depois da pandemia.