As ordens profissionais e o corporativismo

É estranho que, recentemente, tenha surgido um discurso anti-ordens profissionais, como se elas fossem um dos estruturais problemas do país.

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Os que são da minha geração dirão todos o mesmo: os seus pais esforçaram-se muito para darem aos filhos uma formação superior e assim enveredarmos por profissões promotoras do bem social. Acreditavam que seria o melhor para nós e que permitiria ao país progredir.

Cinco décadas após o 25 de Abril, apesar dos problemas, temos de reconhecer que Portugal mudou – muito graças a este esforço. Evoluímos para um contexto europeu (difícil de acompanhar, é certo) e somos mais qualificados. A geração dos meus pais trabalhou e conseguiu que eu e os meus colegas fôssemos arquitetos, médicos, engenheiros, advogados, economistas, enfermeiros, revisores oficiais de contas, farmacêuticos, contabilistas, dentistas, veterinários, biólogos. Ou seja, profissionais inscritos nas ordens e associações profissionais.

Por isso ter sido uma coisa tão boa é estranho que, recentemente, tenha surgido um discurso anti-ordens profissionais, como se elas fossem um dos estruturais problemas do país – “Ordens, essas perigosas e problemáticas instituições, de índole corporativa”.

Estes cidadãos inscritos nas ordens, tendo estudado tantos anos e obrigados pelo mercado de trabalho a manter atuais os seus níveis de formação, são cidadãos exigentes consigo próprios e com os outros, nomeadamente com o Estado. Compreende-se que reivindiquem, que reflitam, que discutam, que intervenham socialmente. Que sejam incómodos às vezes, e associativos de vez em quando, se acreditarem nas causas.

Pessoalmente, julgamos que o corporativismo que ameaça a estabilidade social era aquele latente nas grandes corporações que dominam o fornecimento das energias e combustíveis, nos fundos especulativos, nos grupos tecnológicos que usam a informação digital para monopolizar serviços, nos grupos imobiliários ligados aos capitais de risco que comprometem qualquer política social de habitação. Mas, pelos vistos não, a fiar pela retórica vigente, o perigoso corporativismo está nos nossos médicos, arquitetos, advogados.

Vem isto a propósito da correria do Governo para a aplicação urgente da nova Lei das Ordens, revendo os estatutos destas instituições sem diálogo, sem ponderação e sem cuidado. O que está em causa não é o tal corporativismo dos nossos profissionais, mas sim uma pública chantagem europeia, que ameaça cativar fundos comunitários se o Governo não puser até ao Verão, perdoem-me o trocadilho, ordem naquelas ordens. Neste contexto, assistimos a entidades ditas autónomas impondo a mistura de alhos com bugalhos, que é como quem diz, advogados com solicitadores, médicos com técnicos de saúde e, novamente, engenheiros com arquitetos. E todos dependentes de académicos puros, distantes do mercado de trabalho.

Temos construído, com esforço, uma imagem de um país com profissionais altamente qualificados e não é justo que agora o poder político nos venha apelidar de corporativos só porque se comprometeu com um processo de uma forma que nunca devia ter feito. Não se pode concordar que, por motivos financeiros de circunstância, se comprometa o grande feito geracional dos tempos democráticos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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