A insuportável precariedade na ciência em Portugal
Não encontro explicação para a terrível injustiça em Portugal relativa à geração de cientistas que de facto colocou o país no mapa da investigação internacional.
A editora Gradiva, com o apoio do Laboratório de Instrumentação e Partículas (LIP), lança uma reedição do Manifesto para a Ciência em Portugal de José Mariano Gago, que editou pela primeira vez em 1990. Nas décadas seguintes, Mariano Gago conseguiu tirar a ciência portuguesa do seu atraso atávico. A ciência em Portugal internacionalizou-se. Adquiriu-se experiência e maturidade científica. O número de publicações científicas cresceu exponencialmente. Milhares de jovens obtiveram um doutoramento. O investimento em ciência cresceu.
Embora Portugal ainda esteja muito longe dos níveis europeus, é certo que se assistiu nas últimas três décadas ao ressurgimento da ciência em Portugal. Mas neste processo criou-se uma intolerável aberração, o cientista trabalhador precário.
A esmagadora maioria dos investigadores em Portugal pertence a uma de duas categorias, ou são professores universitários ou são investigadores com contrato a prazo (ou ainda bolseiros). Os primeiros têm uma situação estável, mas com poucas perspectivas de evolução na carreira, em departamentos universitários que cresceram de forma anárquica e que hoje estão saturados. Os segundos, tipicamente com contratos de cinco anos, são seleccionados em concursos promovidos centralmente pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).
Este sistema tem funcionado nas últimas décadas de forma irregular, oscilando entre anos de concurso com muitas vagas seguido de vários anos sem concurso ou concursos com baixíssimas taxas de sucesso. Uma fracção destes investigadores tem hoje entre 45 e 55 anos, dez a 20 anos de investigação após o doutoramento, lidera grupos de investigação e tem um curriculum científico invejável. Ainda assim não tem uma situação estável nem perspectivas claras de carreira. A sua permanência no sistema no fim do contrato é regularmente uma fonte de angústia.
Não encontro explicação para a terrível injustiça em Portugal relativa à geração de cientistas que de facto colocou o país no mapa da investigação internacional. Não haverá muitas profissões em Portugal em que o estatuto laboral seja tão precário. No fim da escala estão os bolseiros, em fase de preparação de doutoramento ou mesmo no pós-doutoramento (pos-docs). Estas pessoas não têm quaisquer regalias sociais, nem seguro de saúde, nem direito a subsídio de desemprego, nem integração no sistema de pensões.
Para aliviar esta precariedade insuportável no século XXI as instituições encontraram forma de oferecer um seguro de saúde mínimo e passou a ser possível efectuar descontos para a segurança social financiados pelas instituições. O governo anterior promoveu o fim das bolsas pos-doc oferecidas pelas instituições no quadro dos seus projectos ajudando-as financeiramente na transformação das bolsas em contratos de trabalho temporários. Um passo na direcção certa, mas insuficiente.
Os contratos temporários não são em si errados, sendo utilizados por muitos países. O que é errado é o prolongamento de uma situação precária por muitos anos como acontece em Portugal. Considero que até aos 35 anos de idade, e tendo uma experiência de investigação de cerca de cinco anos após o doutoramento, os investigadores devem ter a oportunidade de se candidatar ao ingresso numa carreira estável. Apenas uma fracção reduzida dos investigadores permanecerá no sistema científico, devendo os outros ser absorvidos pelas empresas. Um sistema massivo de incentivos ao emprego de doutorados pela indústria ou serviços devia ser uma prioridade nacional! É tão óbvio que não necessita e justificação.
O sistema presente não atrai nem consegue reter os melhores investigadores. Cresce o número de investigadores que ruma ao estrangeiro, pois em Portugal a perspectiva de carreira científica continua a ser incerta. Enquanto líder do grupo do LIP integrado na experiência CMS no colisor LHC do CERN, durante três décadas, tive oportunidade de observar recorrentemente este fenómeno. O grupo CMS é um dos maiores grupos de investigação no LIP. Ao longo da sua existência, o grupo CMS adquiriu visibilidade no CERN e atraiu regularmente investigadores estrangeiros a Portugal. Quinze investigadores pos-doc de nacionalidade estrangeira fizeram, nalgum momento, parte do grupo.
No relatório de avaliação institucional realizado em Julho de 2019 por um painel internacional por iniciativa da FCT, o LIP recebeu a mais alta classificação. A contribuição do grupo CMS para esta avaliação foi explicitamente reconhecida. Segundo o relatório, “o grupo CMS é realmente notável e de classe mundial”. Pois bem, nestas três décadas o grupo apenas teve tês investigadores com contrato permanente. Destes três, dois já eram professores universitários aquando da constituição do grupo. Portanto, apenas um investigador adquiriu contrato permanente para participar nas actividades do grupo CMS.
Chegou a hora de acabar com a insuportável precariedade na ciência em Portugal! O sistema científico nacional precisa da definição de uma carreira científica, articulada com a carreira docente universitária, que vigore em todas as instituições científicas e universidades. O sistema deve manter em todas as instituições e áreas científicas um certo número de posições de carreira disponíveis anualmente.
Uma planificação de longo prazo (duas a três décadas) da evolução previsível dos lugares nas instituições científicas e nos departamentos universitários, organizada por áreas de investigação, deverá ser estudada, debatida e publicitada. Uma grande transparência é fundamental. Estas são condições sine qua non de atracção e fixação dos nossos melhores investigadores. Por outro lado, um processo de integração na carreira dos investigadores actuais com contrato a prazo deve ser cuidadosamente planeado e conduzido de forma a evitar a disrupção do sistema científico nacional.