Homenagem a José Mariano Gago nos seus 75 anos
Esta é a nota introdutória ao Manifesto para a Ciência em Portugal, que José Mariano Gago publicou em 1990 e que a editora Gradiva reedita agora.
A 16 de Maio de 2023, o José Mariano Gago faria 75 anos. Passaram já oito anos desde a sua morte, e 33 desde a publicação do seu Manifesto para a Ciência em Portugal. Contudo, o seu pensamento e acção continuam a ser de extrema actualidade: não há desenvolvimento científico sustentado numa sociedade sem cultura científica, ou que confunda ciência e tecnologia, reduzindo a primeira a um instrumento da segunda, ouvi lhe muitas vezes. Mais do que uma homenagem, a presente reedição do Manifesto para a Ciência em Portugal é o nosso contributo para que cada um, na construção da sua visão própria, possa a ele ter acesso.
Conheci o José Mariano graças a um cartaz pequeno, escrito à mão, afixado à entrada do pavilhão central do IST — Instituto Superior Técnico em 1978. O cartaz anunciava um “curso livre de Física de Partículas”. O José Mariano tinha regressado havia pouco tempo a Portugal e ao IST, de onde tinha partido no início dos anos 70, como bolseiro do IAC — Instituto de Alta Cultura, para fazer um doutoramento em Paris e, depois, trabalhar no CERN — Organização Europeia para a Investigação Nuclear. Tinha saído “a salto”, com mandado de captura emitido pela PIDE, mas mantendo a bolsa, em boa parte graças a Abreu Faro, professor do Técnico e presidente do IAC.
Durante quase dois anos, o curso teve lugar todas as semanas. A ênfase na experiência rigorosa como método e na teoria como modelo de um Universo que se pretende conhecer contrastava com o modo como se ensinava no IST e em Portugal.
Em poucos anos, o José Mariano operou uma revolução no Departamento de Física: no corpo docente, com a entrada de professores que tinham feito o doutoramento fora de Portugal e de muitos jovens assistentes, sedentos de iniciar uma carreira de investigação; no ensino da física experimental, introduzindo pequenos projectos baseados em artigos publicados em revistas internacionais de ensino, que implicavam a montagem de dispositivos experimentais, com a produção de pequenas peças e o empréstimo ou compra de equipamentos e objectos diversos, sempre com orçamentos reduzidos e muita imaginação.
No Verão de 1981, o José Mariano Gago e a Conceição Abreu organizaram, com o apoio do CERN e de outros professores e estudantes, a exposição De Que São Feitas as Coisas?. Era uma exposição de ciência para o grande público, que interpelava directamente as pessoas: dê a volta à manivela, faça girar o velho e lindo gerador que estava há muitos anos no armário e acenda a lâmpada eléctrica; traga o seu anel e logo se diz se é de ouro, prata ou pechisbeque. O impacto foi grande — nas pessoas, que afluíram noite dentro, e nos media, que lhe chegaram a dar destaque de primeira página.
Pela primeira vez senti que, em Portugal, a ideia de desenvolvimento científico estava, mesmo no imaginário das pessoas que pouca instrução tinham, associada à de progresso pessoal e nacional. Essa “aliança” foi acarinhada e fortalecida pelo José Mariano ao longo de toda a sua vida científica e política. Ainda hoje, apesar dos tempos que se têm vivido, é factor maior de sustentação da ciência em Portugal.
Associada à exposição, realizou se em Lisboa a grande Conferência Europeia de Física das Altas Energias. Estiveram presentes dois prémios Nobel de Física, Richard Feynman e Abdus Salam, algo inédito em Portugal. O INIC — Instituto Nacional de Investigação Científica assinou com o CERN um protocolo, mediado pelo José Mariano, que garantia o financiamento equivalente a um investigador por ano no CERN. Hoje parece pouco, muito pouco, mas na altura esses 12 meses, parcimoniosamente divididos, permitiram dar início a uma presença regular de estudantes e investigadores portugueses, físicos experimentais e teóricos, no CERN. Contou-se ainda com o apoio da embaixada Francesa e da École Polytechnique de Paris, onde o José Mariano tinha deixado inúmeros amigos.
Peter Sonderegger acolheu os primeiros estudantes portugueses no CERN. Eu próprio fiz o doutoramento a trabalhar directamente com o Peter, tendo o José Mariano Gago e o Jorge Dias de Deus como orientadores. Em finais de 1984, tudo acelerou. Surgiu uma oportunidade para Portugal aderir ao CERN e o José Mariano agarrou a com as duas mãos. O acordo de adesão foi assinado em 1985. O “Fundo CERN”, que ainda hoje assegura a participação dos grupos portugueses no CERN, foi instituído. O LIP — Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas foi criado em Maio de 1986, por iniciativa do José Mariano, que nesse mesmo mês de Maio assumiu a presidência da JNICT — Junta de Investigação Científica e Tecnológica. A “pré-história” tinha acabado, a “História” ia começar...