A (des)orientação da DGS

A orientação revela-se uma oportunidade perdida para promover, de forma cientificamente sustentada, a melhoria da qualidade dos cuidados de saúde materno-infantis.

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A Direção-Geral de Saúde (DGS) divulgou, há dias, uma orientação referente aos cuidados de saúde durante o trabalho de parto (TP), no que parecia um esforço de coordenação de diferentes entidades, como a Ordem dos Médicos (OM) e a Ordem dos Enfermeiros (OE). O documento pretende estabelecer o que era já uma realidade praticada: o reconhecimento formal de que os enfermeiros especialistas em saúde materna e obstétrica (EESMO) deverão ser a figura responsável pelos TP de baixo risco.

Apesar da inovadora (para o nosso país) multidisciplinaridade deste grupo de trabalho, é notável o foco em questões técnicas e a ausência das perspetivas de utentes. O documento não reflete um esforço de promoção da participação cidadã nem o envolvimento de representantes de movimentos de direitos das mulheres. Esta questão está longe de ser um detalhe, e é mesmo considerada essencial pela Organização Mundial de Saúde (OMS) na promoção de cuidados que respeitem os direitos das mulheres em todos os contextos. Não se percebe, ao longo do documento, um reconhecimento consistente da autodeterminação da mulher e do direito ao consentimento e recusa informados. De entre as intervenções listadas, não há menção ao desenvolvimento de ambientes que contribuam para a comunicação, a segurança, o empoderamento da mulher e a otimização da experiência de parto.

Esta orientação, diz-nos a DGS, está “de acordo com aquelas que são, atualmente, consideradas internacionalmente as melhores práticas de saúde nesta área, baseadas na evidência científica disponível”. Apesar da performance narrativa de cientificidade, esta orientação parece resultar, sobretudo, de uma argumentação interprofissional que pretendeu acomodar uma distribuição de tarefas e competências, onde as eventuais disputas se basearam mais na opinião das/os autoras/es e não tanto em evidência ou em orientações internacionais.

A este respeito, as recomendações da OMS sobre os cuidados para uma experiência de parto positiva são um documento de referência, precisamente porque transferem para recomendações práticas uma rigorosa análise da evidência científica, visando o desenvolvimento de políticas locais e globais. No entanto, e apesar de figurar na lista de referências, a DGS parece ter dispensado as recomendações emanadas pela OMS. A realização de cardiotocografia (CTG) contínua na fase latente; restrição alimentar; exames vaginais com intervalos de 30 minutos; ou condicionamento da posição a adotar durante o parto são alguns exemplos de procedimentos contrários à evidência científica atual. Não surpreende que três dos pontos incluídos nesta orientação não tenham obtido o consenso do Colégio de Especialidade da OE e da Associação Portuguesa de Enfermeiros Obstetras, por se referirem a práticas desaconselhadas pelas entidades internacionais de referência.

Enquanto cientistas, reconhecemos o potencial impacto positivo da uniformização organizacional trazida por esta orientação para os serviços de saúde materna. No entanto, não podemos deixar de assinalar as lacunas graves na interpretação de evidência robusta e atual, e na sua aplicação enviesada – e até contraditória – às práticas clínicas listadas. Surpreendentemente, são citadas guidelines desatualizadas e algumas com mais de 20 anos. Esta orientação revela-se, assim, como uma oportunidade perdida para efetivamente promover, de forma cientificamente sustentada, a melhoria da qualidade dos cuidados de saúde materno-infantis no nosso país, onde, ainda para mais, assistimos a um preocupante aumento da mortalidade materna.

É imprescindível delinear políticas públicas e outras medidas que efetivamente promovam práticas profissionais baseadas em evidência, que promovam a autonomia da mulher e que a coloquem no centro das decisões. É imprescindível definir a ciência – e não a opinião – como ponto de partida para a discussão dos cuidados de saúde.

Rita Araújo, prof. adjunta no Instituto Politécnico de Bragança, investigadora integrada do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade - UMinho

Inês Furtado, médica anestesista, membro do Observatório da Violência Obstétrica (OVO)

Mário J.D.S. Santos, prof. auxiliar convidado na UBI, investigador integrado no CIES-Iscte, e co-coordenador do Laboratório de Estudos Sociais sobre o Nascimento (nascer.pt)

Raquel Costa, investigadora integrada do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP) e do Laboratório Associado para a Investigação Integrativa e Translacional em Saúde Populacional (ITR)

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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