O mundo seria um lugar melhor se não se fizessem piropos. O céu seria mais azul, os jardins mais floridos e as ruas um local mais seguro. Mas há certas coisas que não mudam da noite para o dia e eu, cá para mim, contento-me com pequenas vitórias. Uma dessas conquistas é já nem sequer me lembrar da última vez em que disseram coisas obscenas em público. Até à passada segunda-feira.
Não eram ainda nove horas da manhã, estava eu a ir para o trabalho quando vejo, no cimo das escadas do metro de Arroios, um indivíduo a urinar contra um muro. Desviei o olhar (é cedo demais para ter de se ver uma cena destas), mas senti-o a virar-se para mim. O homem cumprimentou-me com um “Bom dia, princesa”, enquanto fechava a braguilha das calças (não aguentei, tive de olhar). Agora sim, pensei, vai ser um bom dia.
Já estava quase a chegar ao escritório e o homem que urinava à entrada do metro não era nada senão uma recordação à beira do esquecimento. Caminhava por grupos de turistas, amigos e colegas prestes a começar o dia e ouvi, no meio da agitação citadina, um “eh lá” tão perto de mim que mais valia ter-me sido sussurrado ao ouvido. Ainda me debati sobre se me deveria virar para trás e encarar o responsável, mas contentei-me a sacudir o arrepio de asco e entrei no prédio.
Depois de ter almoçado numa pastelaria lá ao pé, estava à espera que o semáforo ficasse verde para os peões. Na minha impaciência para voltar ao trabalho e poder resolver as questões que me ocuparam a cabeça durante a hora de almoço, quase não reparei no que foi dos mais inesperados piropos que já vi acontecer. No carro que passava à minha frente, o homem que ia no lugar do passageiro conseguiu pôr quase todo o tronco do lado de fora da janela enquanto gesticulava com a mão tal e qual um estereotípico italiano que diz “mamma mia”. Uma parte de mim quase quis rir, não tivesse sido isto um comentário implícito ao meu corpo ou à minha roupa. Voltei a fazer a pergunta que, todos estes anos depois, ainda fica por responder: porquê?
Quando um homem diz a uma pessoa desconhecida na rua que tem “umas belas pernas”, o que é que pretende? Sejamos honestos, por muito inaptos que possam ser no jogo do engate, não podem de forma alguma pensar que, se forem persistentes o suficiente, um dia vai acontecer, vão conseguir um número de telefone ou um encontro marcado ou algum tipo de avanço sexual. Não, parece-me que o que temos em mãos é o resultado de uma dinâmica de poder entre dois papéis de género.
Vou um pouco mais além, porque espero que já não seja novidade dizer que os homens são os que mais cometem crimes violentos — o Relatório Anual da APAV de 2022 revelou que os homens compõem 62% dos autores de crimes e de outras formas de violência. Deixando este facto assente, mergulho mais fundo na minha questão de partida. Dou por mim a rever as recordações que guardo de piropos desagradáveis e transgressores e noto um padrão: aconteceu muito mais vezes vindo de homens que estavam em grupo. E, pegando em pequenos detalhes dessas memórias, parece-me que muitos deles só o faziam para impressionar os pares. Num segundo, tecem uma consideração sobre as mamas de alguém, e no seguinte estão a virar-se para trás, à espera de uma reacção do resto do grupo, quase como quem diz “Olha, eu também sei fazer. Sou igual a ti”.
Esta é, ao que tudo indica, uma disputa não só por validação, mas pelo título de “masculinidade mais forte” — é necessário manifestar um vigor másculo e nada os põe mais em vantagem do que aproveitar-se de um ciclo de abuso que os beneficia desde sempre. É fácil comentar o corpo de uma pessoa desconhecida quando nos sentimos no direito de o fazer e porque não, se nos torna alguém com um carácter digno — arrisco-me a dizer superior — que se insere num determinado grupo social?
Talvez estejamos perante uma evolução perversa e agressiva da tradicional medição do comprimento do pénis. Não que essa seja uma prática saudável: não é o tamanho do pénis que dita a masculinidade, nem é a masculinidade que dita o valor de alguém. Ainda assim, especialmente enquanto parte receptora de piropos, há uma parte de mim que deseja que se volte à avaliação da virilidade associada às características penianas. Claro que preferia que se pusesse um fim à dinâmica de masculinidade tóxica, pelo bem de todes, mas contentar-me-ia com esta pequena vitória.