Ricardo fotografou a raça garvonesa com a dignidade de um animal selvagem
Ricardo Guerreiro, fotógrafo e realizador, mergulhou na raça garvonesa como quem penetra numa savana africana e nasceu um livro que não existia: Garvonesa - Reencontro com uma Raça Histórica.
Ano 2000. De regresso de visita a familiares no Algarve, Ricardo parou na área de serviço de Alcácer do Sal e no toalhete que cobria o tabuleiro da cafetaria encontrou a garvonesa ilustrada na edição Algumas Raças de Bovinos de Portugal Continental. "Era a primeira referência escrita que via sobre a raça. Até então, apenas tinha as referências orais na zona de Garvão. Estava incrédulo com a descoberta", recorda Ricardo Guerreiro, há 32 anos sem contacto próximo e recorrente com a Herdade do Arzil — os avós reformaram-se, deixando de lá viver —, com o gado bovino e com as duas últimas garvonesas do Arzil.
Ali mesmo, na cafetaria da estação de serviço, Ricardo, que ainda não era nem fotógrafo e muito menos realizador, decidiu que iria fazer "qualquer coisa" sobre a raça. E isso surge agora na forma do livro Garvonesa - Reencontro com uma Raça Histórica, que é sobretudo "um regresso a casa" e o grande responsável por o autor estar de novo tão regularmente em Garvão, zona a que chama "sem complexos" a sua terra, sem lá ter nascido ou sem nunca ter lá vivido.
"É o livro que não existia e que eu queria ter", resume à Fugas. Preencheu-o de fotografias e de textos em memória de familiares e do vaqueiro do Arzil, António Custódio Alexandre, com quem foi para o campo e que ajudou a espicaçar a sua curiosidade. "'Será que existe mesmo aquela raça? A raça da minha terra!', pensava. Era um mistério latente."
Longe de ser um mito, existe hoje um documento de uma raça que ocupava toda a região central e litoral do Baixo Alentejo, onde era usada essencialmente como força motriz de carros e alfaias. Na bacia hidrográfica do Mira terão existido aos milhares. Mas no início dos anos de 1990 a garvonesa ficaria perto da extinção — restavam cerca de oitenta animais —, por culpa da maquinação da agricultura e da sua substituição por raças importadas já melhoradas para a produção de carne e de leite. A raça garvonesa conta hoje com cerca de 700 animais inscritos no registo zootécnico, gerido pela Associação de Agricultores do Campo Branco (AACB), estando "estável mas não fora de perigo".
"Portugal cuida mal desse património", lamenta Ricardo Guerreiro, habituado a camuflar-se na natureza para a revelar e assim ajudar a protegê-la. "Gosto de fotografar os mal-amados, o que está e ninguém repara. As pessoas só podem gostar daquilo que conhecem", repete.
Começava assim o artigo "Como a genética salvou a garvonesa" que o próprio assinou na National Geographic em Junho de 2013: "À excepção do relevo da zona de Santana da Serra, concelho de Ourique, o cenário que se avista poderia ser descrito por um fotógrafo em missão na savana africana. O sol vai quase no zénite e uma manada de uma centena de herbívoros pasta calmamente. Algumas fêmeas chamam as crias que, apesar da ausência de predadores, deixaram escondidas entre a vegetação enquanto se alimentam, fruto do seu instinto primordial de presas. Dois machos medem forças, entrelaçando os chifres, e um acaba por reforçar o domínio sobre o harém. Vários juvenis lutam, imitando os adultos numa brincadeira que os preparará para duelos futuros."
O livro de 144 páginas assemelha-se ao de um trabalho de campo num safari africano. "Estes bichos retêm muito das características selvagens. Posso fazer o meu trabalho aqui ou em África a observar os gnus. Basta pô-los num determinado contexto. Trata-se de uma observação que não se distingue da de uma manada de búfalos sem predador", explica o autor de quase cem fotografias publicadas nesta edição, pouquíssimas das quais com pessoas ou com qualquer elemento humano.
"A experiência dos primeiros meses a acompanhar esta raça levou-me a perceber que, se queria imergir na vida e intimidade destes herbívoros, teria de investir tempo, acostumá-los à minha presença, ter paciência e tornar-me parte da manada. Agora que apenas um criador ainda gere o gado dessa forma ancestral, de contacto humano diário e a ser preso e estabulado, a maioria dos animais das outras explorações que visitei reagia à minha presença de forma análoga, embora menos aparatosa, que os veados ou corços silvestres noutras paragens do país: fugindo. Ao longo dos anos fui também observando a maioria dos comportamentos entre indivíduos, dinâmicas de manada e outras particularidades que estou habituado a ver nos documentários sobre gnus, búfalos ou bisontes. Isto despertou-me para algumas questões mais profundas como a interrogação sobre o que tiramos do nosso contacto com a vida selvagem e que, aparentemente, não temos para tirar com animais domésticos. Basta olhar para a infindável oferta lúdico-turística em torno da observação de vida selvagem e compará-la com a praticamente inexistente oferta do mesmo género no que toca a animais domésticos. Estou convencido de que não há diferença no que concerne à contemplação de comportamentos gerais e/ou peculiaridades de cada indivíduo. No entanto, os animais selvagens exercem sobre nós um qualquer fascínio que nos leva a buscá-los, ao passo que os domésticos estão relegados ao esquecimento."
Pontilhando pelas páginas do livro, algumas fotografias a preto e branco espicaçam a memória de uma terra remota, percorrida pelo "gado da testa preta", corpulento, rústico e resiliente de canga ao pescoço. As fêmeas de cor castanha/avermelhada, de dorso mais claro e chanfro, cernelha e extremidades dos membros pretos. Os machos de cor predominantemente preta, dorso mais claro e avermelhado. O temperamento, geralmente dócil, facilita o maneio e a criação em regime extensivo. Escreve o autor: "Curiosamente, foi nos locais em que a raça garvonesa melhor se adaptou ao meio e evoluiu para o que é hoje, que historicamente não foi conhecida por este nome. Localmente, este gado era mais conhecido por 'farrusco', 'chamusco', ou 'torrado' do que propriamente por garvonês, sendo os três adjectivos apenas uma forma de o distinguir do gado alentejano normal, unicolor. Ainda hoje se encontram pessoas de alguma idade a usar essas denominações."
À data da publicação deste livro, a garvonesa está presente em Albernôa, Alcáçovas, Aldeia Nova de São Bento (exploração gerida por Carlos Bettencourt, secretário técnico da raça), Barrancos, Montemor-o-Novo, Orada (Borba), Penamacor, Santo Aleixo da Restauração, Tentúgal e Vila Verde de Ficalho, não esquecendo Castro Verde que, muito embora não tenha nenhuma manada destes animais, é onde se situa a Associação de Agricultores do Campo Branco, entidade que gere o registo zootécnico da raça.
"Até há pouco tempo, alimentei a ideia de que também um dia diria com propriedade 'às vezes lá no meu monte' e possuiria gado chamusco, com reses de amansia e tudo. Ainda não aconteceu. Porventura não acontecerá, mas o imenso gosto de partilhar estas histórias sobre a raça Garvonesa com o público, deixando-as em livro, traz-me algum cómodo e consolo à alma."