A falácia da dissolução do Parlamento
Dissolver a AR no curto prazo, um ano e uns meses depois das eleições, funcionaria como um reconhecimento de que ela não está a funcionar conforme as regras democráticas.
A dissolução do Governo não existe. O Presidente da República pode demitir o executivo ou designar um novo primeiro-ministro em condições específicas, mas quando se fala no acto específico da dissolução, é preciso dizer que é sobre a Assembleia da República (AR) e sobre os seus 230 deputados que ele recai. Tem consequências no Governo? Pode ter, porque conduz obrigatoriamente a novas eleições, mas é uma acção directa sobre o Parlamento e indirecta sobre o executivo.
Lê-se no lexionário disponível no site do Diário da República Electrónico que "a dissolução da Assembleia da República consiste num acto político livre do Presidente da República que determina a cessação de funções desse órgão parlamentar antes de o mesmo completar a legislatura". Continua a definição: "O Presidente da República, no contexto do sistema político de governo semipresidencialista consagrado pela Constituição de 1976, tem a faculdade de aprovar um decreto de dissolução da Assembleia da República, ao abrigo da alínea e) do artigo 133.º da Constituição da República Portuguesa. A dissolução não acarreta necessariamente a demissão do Governo, mas implica a marcação de novas eleições parlamentares."
A prática constitucional mostra que, "sem prejuízo de se tratar de um acto livre (...), as dissoluções ocorrem, usualmente, no contexto de uma crise política que envolve o Governo", explica-se no mesmo lexionário. É esta a falácia. Porque atingir o coração da AR, que é o garante da fiscalização do Governo, para demover um primeiro-ministro e a sua equipa problemática, parece-me mais um risco e um tiro ao lado do que uma aposta certeira. A menos que o Parlamento, ou grande parte dele, esteja de tal modo enredado nos problemas do executivo que o regular funcionamento das instituições democráticas esteja em causa.
Dissolver a AR no curto prazo, um ano e uns meses depois das eleições, quando não há sinais claros de que o tabuleiro tenha virado ou de que os portugueses já não se reconhecem nela, funcionaria como uma espécie de castigo pelo seu trabalho sofrível e um reconhecimento de que ela não está a funcionar conforme as regras democráticas. Isso ainda não é o que se passa neste momento. E escrevo ainda porque, com o desenrolar da comissão de inquérito à TAP, o que temos visto é que o regular funcionamento do Parlamento está cada vez mais contaminado pelos casos que desgastam o Governo – “erros localizados ainda que graves”, como disse Augusto Santos Silva na sessão do 49.º aniversário do 25 de Abril. E esse contágio pode reflectir-se negativamente na avaliação que o povo faz de ambas as instituições.
Quando (ou se) estes dois cenários se verificarem (uma maioria eleitoral diferente da que saiu das eleições ou um Parlamento que deixou de fazer o seu trabalho), a dissolução deixará de ser uma falácia. E, então, não haverá datas certas para eleições.