Propaganda velha e nova
Nos grandes cartazes espalhados por todos os lados, na rádio e na televisão, temos retratos e relatos de soldados bem equipados. Apelos à defesa do país. Cânticos à vitória final.
Não consigo calcular a dimensão tal é o seu tamanho. Nem consigo ver a assinatura do pintor. Nem o ano. A grafite e os pincéis trabalharam directamente na parede. O Realismo Socialista ali à frente dos meus olhos. Uma estátua no meio de um jardim. Um herói certamente. Ao fundo os prédios altos. Os do poder. Uma bandeira vermelha. Pessoas a passear. Umas sentadas. Muitas crianças. Quase sempre famílias. Parece um fim de tarde de domingo. Sol e nuvens. No canto inferior direito, a subir uma escadaria, um casal com dois filhos em grande plano. Os quatro sorridentes. Ela de vestido às flores. Ele com a filha ao ombro. O rapaz, o mais velho, vai à frente com ar de timoneiro. Uma família em ascensão. Como o regime. Quase a fugir à escala, de cada lado duas pombas brancas voam em direcção ao largo onde a vida corre serena e em paz.
As pombas continuam a voar pela Ucrânia. Já não em pinturas, mas em grande número em redor dos contentores do lixo. Também há corvos pretos. Nos grandes cartazes espalhados por todos os lados, na rádio e na televisão, temos retratos e relatos de soldados bem equipados. Apelos à defesa do país. Cânticos à vitória final. Exposições de rua que chocam com fotografias da guerra. Até tapetes com a cara de Putin. Nunca deu tanto prazer aos ucranianos limpar os sapatos finos ou as botas encardidas. O realismo agora é outro, mas a propaganda continua e em força.
Enquanto se conversa com uma senhora que diz estar farta de bombardeamentos, vou apreciando o voar das pombas, dos corvos e dos pequenos pássaros ladrões. Juntam-se todos na berma do passeio já meio desfeito. Há restos de comida deixados pelos milhares de humanos que ali habitam. Os corvos negros ficam ao longe à espera da oportunidade. As pombas vão repartindo com pequenas bicadas. Os pássaros roubam a comida sem pousar no chão. Vem um carro. Tudo foge. Tudo volta. Uma pomba é esmagada junto a um pedaço de pão. Os corvos atacam. Os pássaros continuam a roubar. As pombas continuam a repartir.
É sempre uma questão de pão.