Há pouca coisa normal na vida e carreira de Füllkrug

A história de um goleador tardio e um poço de bizarrias que espicaça nostalgia nos alemães que sabem quem foi Miroslav Klose. Füllkrug tem uma relação saudável com os golos, mas não tanto com dentes.

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Niclas Füllkrug, jogador do Werder Bremen Cathrin Mueller/Getty Images

Niclas Füllkrug só descobriu aos 29 anos que é um goleador temível. Falamos de um jogador que é senhor de várias alcunhas – uma delas em caricatura física, pelo facto de ter um espaço considerável nos dentes da frente. Tem dinheiro para corrigir? Tem, mas não quer.

É alguém que chegou à selecção da Alemanha por acaso, para o Mundial 2022, e acabou por ser dos poucos destaques positivos da mannschaft. E fê-lo numa fase em que os alemães – e o futebol em geral – procuram atacantes mais técnicos, apesar de Füllkrug ser tudo menos isso. Em rigor, parece ser a melhor “cópia” de Miroslav Klose que surgiu nos últimos anos.

Estamos a falar de um avançado que, um dia, esteve numa marquesa para ser operado ao joelho. E foi lá novamente – mais três vezes, porque não há três sem quatro.

Este jogador fez toda a formação no Werder Bremen e chegou a sénior, mas o clube não lhe reconheceu valor suficiente. Cinco anos depois de o clube o mandar embora, o mundo encarregou-se de garantir que teriam de pagar para o terem novamente – e, sem ressentimentos e com perdão, ele aceitou regressar e foi quem mais ajudou o clube a subir à Liga alemã, depois da descida de divisão.

Ainda jovem, Füllkrug foi parar ao hospital com o dente de um colega de equipa preso na cabeça. Coisas que acontecem.

Nada é trivial na vida e carreira deste jogador e não é fácil falar dele sem entrar em bizarrias e cenários profissionais e pessoais incomuns. Mas é justo que tentemos, até porque neste domingo, como em muitos outros domingos, marcou um golo pelo Werder Bremen e cimentou a posição de melhor marcador da Liga alemã, com 15 golos.

Demorou a chegar ao topo

Num Espanha-Alemanha seria suposto haver arte. Mas o 1-1 do Mundial 2022 teve golos de dois jogadores que não ficam a dever muito a esse pelouro: Morata, jogador bastante inteligente, mas com limitações técnicas, e Füllkrug, um “panzer” que não trata a bola por tu – pelo menos não da forma a que estamos habituados nos últimos anos da Alemanha.

E este contexto é importante para perceber do que se fala quando se fala de Niclas Füllkrug. Este jogador estreou-se na Bundesliga há mais de dez anos, mas demorou meia dúzia a fazer uma temporada razoável entre a nata do futebol germânico – em parte por incapacidade própria, mas também com um peso considerável das quatro cirurgias que já fez aos joelhos.

Füllkrug já tinha 25 anos quando marcou 16 golos pelo Hannover, que o tinha comprado, anos antes, ao clube que o fez crescer, mas que não o valorizou como sénior.

"Fui atirado para trás mais de uma vez em fases em que parecia que tinha arrancado. Agora, estou numa trajectória que reflecte o que projectei para durante muito tempo". Devo confessar que me deixa orgulhoso”, apontou, à ESPN, em 2022.

A falta de “olho” do Werder Bremen acabou, mais tarde, por dar ao clube uma factura a pagar – e dizemo-lo de forma literal, porque tiveram mesmo de pagar para o ter de volta. Foram 6,5 milhões de euros.

Nesta altura, Füllkrug já era relativamente conhecido. Pelos golos que ia marcando, mesmo sem ser em grandes doses, mas, sobretudo, pela alcunha “lücke” – palavra que significa “espaço” em alemão e que o ex-colega, Marko Arnautovic, fez “colar” para definir alguém que tem um espaço tremendo entre dois dentes.

Füllkrug já ganhou o suficiente na carreira para corrigir, mas não quer. “Quem me conhece diz que o espaço já é uma imagem de marca e que devo mantê-lo”, justificou à Sky.

Um dente alojado na cabeça

Na última temporada, marcou 19 golos – foi o jogador mais importante para levar o Bremen de volta à Bundesliga. Nesta, mesmo num patamar superior, já leva 15 – é o melhor marcador da prova.

Há pouco falámos da presença de Füllkrug no Mundial 2022, algo que decorre dos golos que marcou, naturalmente, mas nem esses teriam sido suficientes se não fosse a lesão de Werner – “fülle”, como também lhe chamam, nunca tinha jogado pela Alemanha sequer.

Com dois golos em três jogos, acabou por ser uma das poucas boas notícias dessa selecção, espicaçando a nostalgia dos alemães. Nostalgia por ainda se lembrarem, por certo, de um senhor chamado Miroslav Klose.

Füllkrug é uma boa cópia desse tremendo goleador já reformado do futebol – ou, se quisermos, de Mario Gomez, outro “panzer” que se destacou pela Alemanha, fazendo valer uma “espécie” que, actualmente, parece não ser tão apreciada numa selecção cada vez mais técnica.

Toni Kroos já chegou a dizer que a Alemanha sempre fez questão de ter alguém com estas características – Klose e Gomez provam-no – e que um n.º9 clássico “é o tipo de jogador que podem ajudar em certas situações”.

Olhar para o mapa de calor ou mapa de toques na bola de Füllkrug atesta rapidamente que se trata de um jogador focado na área. E a ideia do médio do Real Madrid aponta para o poder físico e de luta na área de alguém que pode ser o destino das “invenções” dos tais jogadores mais técnicos – e fülle, como Klose ou Gomez, sabe mexer-se na área e faz desse predicado a parte mais fundamental do seu jogo.

Ou talvez Kroos falasse apenas de terem Füllkrug em momentos de desespero no jogo, até pelo jogo aéreo muito forte. Seja qual for a premissa, a Alemanha sempre teve espaço para alguém como este avançado do Bremen.

A carreira e o estrelato tardio de Füllkrug já foram detalhados, pelo que este texto pode ficar por aqui. Mas fica apenas, a talhe de foice, como detalhe de encerramento de fim-de-semana, o dia em que Füllkrug, num treino ainda nas camadas jovens do Bremen, chocou com um colega e ficou com um dente desse colega alojado na cabeça.

Foi para o hospital e contou ao site da Bundesliga, em 2017, que “foi muito perigoso, porque com esse dente havia ameaça de infecção por uma bactéria”. Reforce-se que o dente não era dele, era de um colega. Agora, sim, o texto pode terminar.

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