O Tribunal Constitucional e o risco de fragmentação da sociedade
Não sei se os portugueses têm completa noção da importância da Constituição e do papel de fiscalização do Tribunal Constitucional.
A conferência sobre o Constitucionalismo no século XXI marcou a comemoração dos 40 anos do Tribunal Constitucional (TC). O Tribunal fez bem em alargar o debate, incluindo peritos internacionais com outras experiências, em vez de se limitar ao direito constitucional português e ao trabalho feito pelo TC nos seus 40 anos de existência. De qualquer forma, na minha opinião, o sistema português de repartição de responsabilidades entre os órgãos de soberania e a Constituição, que inclui um mecanismo de revisão regular, garantindo a sua relevância, são um bom produto português que merece ser exportado. Não sei se os portugueses têm completa noção da importância da Constituição e do papel de fiscalização do Tribunal Constitucional. Neste aniversário, o TC merece um apelo à “renovação dos votos” entre os portugueses e o Tribunal como instituição crucial para a defesa da democracia.
O TC tem e continua a ter, de facto, uma função crucial na democracia instaurada após o 25 de Abril e a Constituição de 1976, revista em 1982. O mundo mudou, Portugal mudou, mas o papel do Tribunal Constitucional continua a ser fundamental para o bom funcionamento e o desenvolvimento da democracia.
As sociedades enfrentam hoje novos desafios, múltiplas crises – como a da covid-19 e a da invasão da Ucrânia pela Rússia, que fez a guerra regressar à Europa – vieram dar oxigénio a ataques à ordem democrática nos países da União Europeia.
A facilidade de criar e espalhar “verdades alternativas”, a credibilidade dos media tradicionais minada pelas redes sociais, o agravamento das desigualdades sociais, o sentimento de vários grupos ou camadas da população de que não são escutados, a revolta, em alguns países, de agricultores contra medidas de protecção do ambiente, ao mesmo tempo que outros cidadãos exigem mais acção para a transição energética e tantos outros choques de direitos e interesses ameaçam o Estado de Direito e o funcionamento dos órgãos de soberania. A fragmentação extrema e a conversão do direito em arma – em inglês, “lawfare” – colocam novas exigências à justiça constitucional. A situação é mais grave nalguns países, como na Polónia e na Hungria, mas também nas democracias antigas – como os países escandinavos, a Alemanha ou a Holanda – e em Portugal se impõe uma defesa, enérgica e inspirada, da democracia e das suas instituições.
Durante a conferência no TC, Mattias Kumm, da New York School of Law, alertou para o risco de “backsliding”, de uma perda de conquistas em termos de direitos fundamentais. Os populistas, e não só nos EUA, tentam afirmar-se como “o povo”, "o país real", ou como intérpretes da “vontades popular autêntica”, contra uma pluralidade de visões que, sublinha Mattias Kumm, são uma parte essencial da democracia. Susanna Mancini, da Universidade de Bolonha, chamou a atenção para a instrumentalização de direitos humanos pelas forças iliberais e populistas.
Em 1982, na Assembleia da República, Vital Moreira disse-me: “A Constituição é o nosso cimento”. Queria dizer que, nas mudanças em curso na sociedade e na política portuguesa, a Constituição era garante dos valores fundamentais, que tinham recebido dignidade constitucional em 1976. Na altura, o TC ainda não existia. Mas penso muitas vezes naquelas palavras de Vital Moreira, e agora que resido em Portugal faço-o ainda com mais frequência.
As sucessivas revisões, em particular o regime que devolve poderes de revisão constitucional ao Parlamento quando estão decorridos cinco anos desde a data da publicação da revisão anterior, têm assegurado – na minha apreciação – que a Constituição de 1976 se mantém a par das mudanças na sociedade. Não existe clivagem entre Constituição e realidade constitucional. A Constituição adaptou-se à integração europeia, mas esta alteração não esvaziou o Tribunal Constitucional de relevância.
Gomes Canotilho, com quem tenho conversas sobre Direito Constitucional desde os anos 80, durante a nossa última reunião, há mais de uma década, exprimiu alguma hesitação sobre o lugar das constituições nacionais na União Europeia. Ouvir as suas observações que representavam uma reavaliação, por parte de Canotilho, da sua obra Constituição, Dirigente e Vinculação do Legislador chocou-me.
Espero que o meu amigo não me leve a mal, quando digo que a Constituição nacional é bem viva ao lado do Direito Europeu e que o Tribunal Constitucional mantém um papel importantíssimo, mais visível e de uma relevância mais directa para a sociedade portuguesa, do que as instituições europeias.
É um facto que, desde a revisão de 2004, as disposições dos tratados da União Europeia, as normas emanadas pelas suas instituições, são aplicáveis na ordem interna portuguesa (artigo 8.º da CRP), mas o TC mantém-se como cúpula do sistema interno português.
A Europa está, ainda hoje, longe de muitos cidadãos da União que se sentem, em primeiro lugar, cidadãos dos seus próprios países. As instituições da União Europeia sofreram, por muito tempo, de falta de legitimidade aos olhos das pessoas comuns. A ligação do Tribunal Constitucional aos outros órgãos de soberania é muito mais clara e fácil de explicar.
O TC tem uma força moderadora e pacificadora. A eleição faseada, com o papel preponderante da Assembleia da República, elegendo dez dos 13 juízes, a limitação da duração dos mandatos (também para os juízes cooptados), faz com que exista uma ligação entre o TC e sociedade que se baseia nas eleições legislativas. Aqui existe uma diferença enorme em relação ao Supremo Tribunal dos EUA, onde o mandato dos juízes não tem limite temporal, onde um Presidente poderá nomear três ou quatro juízes e o seguinte apenas um ou nenhum. Em consequência, o Supremo Tribunal pode representar as vozes de uma outra era e projectos políticos extremos da administração que os seleccionou.
A desigualdade causa erosão nas sociedades, disse Virgílio Afonso da Silva, da Universidade de São Paulo. Em Portugal o TC pode exercer o papel de guardião da Constituição, inclusive na área de direitos e deveres económicos, sociais e culturais. Esperamos que, quando chamado para se pronunciar sobre as medidas do Governo na área de habitação, também saiba responder. São muitos os temas que, sem dúvida alguma, vão ser levados ao Tribunal Constitucional, por exemplo em situações nas quais cidadãos tentam excluir-se de políticas de ensino – por exemplo, opondo-se à educação cívica. O TC terá de evitar a fragmentação da sociedade, só há um Estado de Direito, para todos.
O Tribunal Constitucional merece a defesa, que também lhe incumbe fazer, do seu papel crucial no Estado de Direito, na sociedade portuguesa de 2023, e nas décadas de vida que ainda terá pela frente.