Estas plantas mediterrânicas homenageiam quem por elas lutou

Manuel Gomes Guerreiro – um dos pioneiros do ambiente no país – dá nome a um percurso ecobotânico em Querença. Ramalho Eanes e o botânico Jorge Paiva estiveram na homenagem ao primeiro reitor da UAlg.

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O arquitecto Fernando Pessoa criou este percurso ecobotânico de homenagem a Manuel Gomes Guerreiro DR

As rugas no tronco da oliveira não enganam. A árvore, que é também património natural, com 1575 anos, assinala a entrada do percurso ecobotânico Manuel Gomes Guerreiro, o primeiro reitor da Universidade do Algarve (UAlg). “Prepare-se! Está prestes a conhecer um jardim sem plantas exóticas ou relvados, mas povoado de espécies adaptadas ao clima mediterrânico”, anuncia a primeira placa à entrada desta rota.

Este mês foi inaugurado um espaço que se apresenta como um “lugar único de registo, aprendizagem e divulgação de centenas de espécies vegetais que respondem de forma positiva à irregularidade das chuvas, aos verões quentes e secos, aos invernos pouco rigorosos”. Esta é uma homenagem a personagens que marcam a paisagem há séculos, mas também a outras que lutaram para que as primeiras não desaparecessem.

O pedreiro agarra num martelo, dá duas pancadas numa pedra tosca, com se estivesse a talhar um diamante. “Assim, fica com a face mais bonita”, diz João Brás, um dos já raros mestres na técnica ancestral de construir valados. A “face”, explica, é o cartão-de-visita do muro que serve de moldura à árvore milenar, certificada pelos investigadores do Departamento Florestal da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. A equipa de jardinagem dá os últimos retoques no percurso, da autoria do arquitecto Fernando Pessoa, um dos pioneiros na defesa do ambiente em Portugal.

Ouve-se uma ave cantar nos ramos de uma aroeira prenúncio de uma Primavera, sem flores à vista. “Na semana passada, estive no Alentejo, andavam a regar cereal para ter comida para o gado”, diz José de Castro, agricultor e tocador de flauta. “Às vezes toco umas modinhas para esquecer tristezas.” O alentejano, que vive no Algarve há mais de 30 anos, ironiza: “Se eu fosse camelo, bebia agora para não passar sede daqui por três ou quatro meses.”

As alterações climáticas não se traduzem apenas no aumento do nível médio das águas do oceano, com prédios à beira-mar ameaçados pela erosão. No interior do Algarve e baixo Alentejo, há um prenúncio de morte de biodiversidade, com a seca a deixar marcas. “Durante a noite caiu cá uma geada que deixou tudo branco; no Natal tivemos temperatura de Primavera o mundo anda às avessas.”

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Percurso ecobotânico

João Brás não conheceu Gomes Guerreiro, mas interpreta, à sua maneira, a raiz do pensamento do académico. “Não vamos ter azeitonas, e já o ano passado assim aconteceu.” Com as alfarrobeiras, diz, repete-se o cenário da natureza em acelerada transformação. “A folha está a cair, numa altura em que deveria estar a renascer.” Assim, confirma a tese, empírica, de que a terra gira ao contrário dos que anunciam progresso infinito e frutos em abundância.

À sombra da velha oliveira, os dois homens falam do tempo como se estivessem a viajar pela história. “Quando era gaiato, no início de Março, já havia calças-de-cuco e abelhinhas [orquídeas selvagens], chovia no Inverno e a Primavera fazia despontar a natureza”, diz o alentejano.

Os “guerreiros” da aldeia

Caminhando pelo trilho dos carvalhos, no final do percurso, outra chamada de atenção: “Poderia estar na Argélia, Jordânia, Turquia, Grécia, mas está em Querença, Sul de Portugal”, lê-se. Vamos entrar na segunda etapa da mostra da flora mediterrânica. O autor do projecto, Fernando Pessoa, lembra que a “desnaturalização da paisagem e a introdução de plantas de outras zonas biogeográficas, que se revelaram invasoras”, são problemas que afectam todo o país. O território, sublinha, “alvo de vários atentados, está por isso mais vulnerável aos incêndios”.

A escassez dos recursos hídricos volta a estar presente. “Vamos ter um Verão muito seco, e a situação não está a ser levada a sério”, avisa o arquitecto paisagista. Há quatro décadas, já Gomes Guerreiro, o homenageado naquele percurso, salientava a importância da escassez dos recursos hídricos, evocando a sua avó, Maria Vitória: “Uma camponesa de grande coragem perante a vida, que me ensinou a compreender e a sentir a angústia da falta de água quando desta dependia a colheita que assegurava a subsistência.”

Nos terraços mais abaixo, na encosta virada a sul, encontramos os loureiros, alfarrobeiras e outras espécies autóctones. Fundem-se os mundos natural, rural e patrimonial uma espécie de lugar de culto da natureza. Os muros de pedra seca, que ali se podem observar, foram reconhecidos pela UNESCO em 2018. Esta arte foi inscrita na lista do Património Cultural Imaterial da Humanidade.

Com recurso a um telemóvel, acede-se a uma aplicação que fornece informação científica, fotografias e vídeos sobre a flora autóctone de que estamos em presença. O naturalista Coronel Rosa Pinto (1942-2018), que reuniu uma colecção particular com mais de 2500 plantas do barrocal algarvio (preservada no Herbário da UAlg), foi conselheiro científico deste projecto.

Os raios de sol, a meio da manhã, libertam o cheiro dos poejos, rosmaninho, tomilho, espécies que integram o mosaico de plantas aromáticas, localizadas na primeira plataforma do percurso ecobotânico. O espírito do lugar, diz o arquitecto Fernando Pessoa, “é muito definido pela flora”. E este lugar, todo este percurso, pejado de espécies que Gomes Guerreiro tanto defendeu e agora recriado pelo arquitecto, é um tributo ao homem que dedicou a vida e as suas qualidades de investigador à ecologia e à floresta.

Manuel Gomes Guerreiro presidiu, em Portugal, ao programa MAB (Man and Biosphere) da UNESCO. Na sua passagem pela vida política, de 1976 a 1977, foi secretário de Estado do Ambiente do I Governo Constitucional, presidido por Mário Soares. Depois, mandatário de Ramalho Eanes na sua candidatura à Presidência da República.

Os pensamentos e os escritos que deixou Manuel Gomes Guerreiro “são referências a ter em consideração e a seguir nos dias de hoje, porque continuam a ser oportunos e actuais”, escreveu Gonçalo Ribeiro Telles, em 2007. Na mesma obra, Ramalho Eanes invoca, no prefácio, a necessidade de respeitar o planeta em todas as suas dimensões. “Atentar contra essa bela e rica diversidade é virar costas à harmonia, à beleza, à estabilidade que é a vida. Vida em que as nossas vidas são meras estrelas-cadentes.”

Na aldeia de Querença já existe uma rua, aliás, uma azinhaga Manuel Gomes Guerreiro, numa alusão à azinheira, espécie que admirava pela “resiliência e capacidade de singrar mesmo em condições adversas”, lê-se no texto da jornalista Marinela Malveiro, que suporta o vídeo sobre a vida e obra do investigador.

“De facto, a filosofia da abundância, consequência de um consumo imoderado de materiais, de energia e de recursos, normalmente por privilegiados, promete transformar-se brutalmente em perspectivas de penúria, o que hoje já alarma pessoas tão bem colocadas como os sócios do Clube de Roma”, afirmou à RTP, em 1977 . Ditas hoje, estas palavras, sublinha a jornalista, “poderiam parecer normais. Mas, há quase 50 anos, revelam que Manuel Gomes Guerreiro era um homem bem à frente do seu tempo”.

Este artigo foi originalmente publicado na edição impressa do PÚBLICO de 9 de Março de 2023