No silêncio dos deuses

Foram identificados cerca de 5000 casos de abuso sexual de crianças na Igreja Católica Portuguesa, entre 1950 e 2022. Cabe perguntar como terá sido nos territórios africanos colonizados por Portugal.

A vinda a público do relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa é da maior importância e, enquanto sociedade, estamos em dívida para com aqueles e aquelas que não soubemos proteger e que tiveram a coragem de denunciar uma instituição tão poderosa.

Foram identificados cerca de 5000 casos de abuso sexual de crianças por representantes da Igreja Católica, entre 1950 e 2022, apenas “a ponta do icebergue”. Cabe perguntar como terá sido nos territórios africanos colonizados por Portugal, onde o poder das missões e dos padres era ainda mais absoluto e onde, perante o regime colonial, o corpo de uma criança, de uma mulher, de uma pessoa negra nada valiam.

Do total de queixas, 0,4% referem-se a pessoas que vivem hoje em países africanos e entre os casos analisados incluem-se situações aí ocorridas antes de 1974 (4 casos em Angola, 1 na Guiné-Bissau e 5 em Moçambique), números que estão com certeza longe de espelhar a realidade passada e presente. Essas são vozes, como tantas outras, que ficaram no silêncio, e é preciso fazer-nos chegar também a elas.

Não deixa de ser profundamente perturbador ouvir a descrição dos casos e ver inúmeros altos-representantes da igreja assistindo, no conforto e na segurança de um dos espaços culturais mais prestigiados do país, a Fundação Calouste Gulbenkian. A sensação é de impunidade. Como se pode aqui ser tão lento e manietado e ser-se ao mesmo tempo tão rápido a identificar “gangs” juvenis; a fazer rusgas nas ditas Zonas Urbanas Sensíveis; a servir de braço armado nos processos de desalojamento sem resposta habitacional, como no bairro do 2.º Torrão na “Almada colonial”; a indiciar Cláudia Simões e Mamadou Ba nos processos em que são vítimas?

O modus operandi da Igreja foi de ocultação sistemática e, como dizem os autores do relatório, “sistémica”. Quão semelhante é esta impunidade e corporativismo com aquilo que encontramos na polícia? Agentes condenados e indiciados são mantidos em funções e sobram evidências de conluio na ocultação dos factos. O silenciamento (quando não mesmo a culpabilização) das vítimas é uma peça fundamental para a legitimidade e continuidade do estado de coisas nestas instituições.

Na maior parte dos casos de abuso sexual de menores pela igreja, já expirou o prazo para a apresentação de queixa. Cerca de 100 dos padres identificados continuam em funções, mesmo sabendo-se que os riscos de reincidência são enormes. Embora sejam importantes o reconhecimento e o pedido de desculpas por parte da igreja, é preciso que esta não se escude na evolução histórica do estatuto da criança para minimizar a responsabilidade sobre os abusos sexuais cometidos no passado, e que não seja evasiva quanto à indemnização das vítimas e à reparação material (possível) dos danos causados, desde logo no que diz respeito aos custos com apoio psicológico/psiquiátrico e à criação de mecanismos de prevenção e intervenção.

Em Agosto, ironia das ironias, temos as jornadas da juventude católica, os lisboetas deste Estado laico pagam o palco do Papa, pagam a consequente subida das rendas e do custo de vida na cidade, e ainda terão de engolir a performance de redenção que a vinda do Papa significará, aliviando a reprovação social desta realidade monstruosa.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

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