Em matéria de azedos, os enchidos do Entrudo, cada um faz como quer

Toda a gente conhece as alheiras, mas só uns poucos ouviram falar de azedos. Devemos prová-los porque está na altura deles e isso é uma forma saborosa de homenagearmos os transmontanos.

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Azedos de Vinhais, a massa é feita para a ocasião, não leva colorau e as carnes desfiadas são apenas de porco NELSON GARRIDO

Anos de convivência com transmontanos ensinaram-nos que por dá cá aquela palha levanta-se um pé-de-vento de fazer estremecer as paredes. Qualquer assunto serve. Os corruptos do costume, as vendas de barragens que não pagam impostos, as guerras entre concelhos (desporto regional), a perda de rendimentos dos agricultores, a degradação dos serviços públicos, os javalis que ficaram mansos e descarados, uma rotunda malparida, mexericos sobre figuras locais, o festival das pencas ou das cebolas novas, a comida em geral e – evidentemente – os enchidos.

Ainda está para nascer outro território que discuta, com tanta paixão, não a fixação dos ingredientes de uma receita, mas os ingredientes de um singelo enchido. E não, não falamos na alheira, mas do azedo. O azedo (ou chouriço azedo, alheirão ou alheira dos pobres) foi o último assunto transmontano que criou outra saborosa balbúrdia à mesa de um restaurante em Mirandela (só podia).

Num enquadramento rápido, diremos que o azedo é um enchido semelhante a uma alheira, mas com menos carne, menos condimentos e mais pão, colocado numa tripa grossa e que nos chega à mesa com um ligeiro acídulo (o tal azedo). Dito assim, é fácil. Mas, nesse tal jantar, no Adega, caímos na patetice de insinuar com as mesuras de quem é das ilhas que os azedos resultariam dos restos da massa das alheiras nos alguidares. O que fomos dizer!

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Azedos da Vifumeiro de Vinhais NELSON GARRIDO

A destruição do argumento começou com a tese de que a massa do azedo é sempre feita de raiz e nunca um sucedâneo da massa da alheira, passou depois para os temperos (com uns a garantirem que a avó nunca meteu alho na massa e outros a jurarem pela honra dos seus que, sem alho, nada feito) e acabou na tipologia necessária das tripas – a tripa de folhos – que, segundo um convidado presente, é o ingrediente essencial para que o enchido fique azedo. “Sem a tripa de folhos o azedo não azeda. Ponto final”, disse, como se estivesse a ditar o texto para um decreto de lei.

Na mesa por onde passavam rodelas de azedos em abundância, com grelos, batatas e azeite do bom, houve quem concordasse e houve quem torcesse o nariz; houve quem citasse documentos e houve quem ameaçasse ligar para cozinheiras que, àquela hora, já dormiam. Conclusão: Trás-os-Montes tem 5544 quilómetros quadrados, nove municípios e 107 mil habitantes.

Em matéria de enchidos, cada um faz como a mãe determinou e não lhe falem de cânones porque aquilo que os de Bragança pensam não faz lei em Macedo, Vinhais, Valpaços ou Chaves. Era só o que faltava. Aliás, os transmontanos precisam que os conterrâneos dos concelhos vizinhos façam as coisas de forma bem diferente. Caso contrário, com quem iriam eles gozar? Com os espanhóis? Nem pensar.

Ainda assim, toda a gente concorda que o azedo é um enchido popular que se come preferencialmente no Entrudo, na companhia dos grelos, à semelhança do que acontece com o butelo (este mais rico porque, naquele tempo, só se usava a bexiga de porco para guardar os pequenos ossos de Assuã e, em regra, um porco só tem uma bexiga, ao contrário do que acontece hoje...). Por ter a matriz da alheira (pão e carnes menos nobres), cada casa podia fazer vários azedos, o que do ponto de vista da economia familiar dava jeito em tempos de escassez.

Durante anos ouvimos dizer por parte da transmontana Justa Nobre que o azedo era feito com o tal resto da massa das alheiras e que o toque acídulo já começava nos alguidares. Hoje, a chef entende que as coisas não terão começado assim: “Se formos a ver bem, o recheio do azedo é mais pobre em carnes do que a alheira, o que significa – e tenho feito alguns levantamentos – que a preparação da massa dos azedos era feita antes de se completar os temperos e juntar os restantes ingredientes para a massa das alheiras. O alho, por exemplo, faz parte da alheira, mas não do azedo”, diz-nos.

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Com os fundamentais grelos dr

Por seu lado, Virgílio Gomes, outro ilustre transmontano (ainda faltam uns quantos nesta história) recorda-se da produção de azedos em casa de sua mãe. E sim, garante-nos, faziam-se com o resto da massa das alheiras. “O que acontecia era o seguinte: enquanto havia tripas finas enchiam-se as alheiras, quando acabavam essas tripas usavam-se as tripas do intestino grosso dos porcos. Mas a massa era a mesma. O carácter azedo tem a ver com a grossura do enchido. Como o fumo demora mais tempo a fazer efeito, o interior da massa, com muito pão e pouco fermento, ganha aquelas notas azedas que agradam às pessoas por ser algo diferente das alheiras. E como tem mais pão, enche mais.”

Investigador atento aos detalhes antropológicos e linguísticos, António Monteiro descreve, no seu livro Alheiras, e Alheiras de Mirandela - Do Imaginário à Materialidade da Memória, o azedo como um “enchido fumado de carnes (galinha e porco – cabeça e barriga), gorduras de porco e pão de trigo com côdea, sem alho na condimentação e pouco (ou muito pouco) colorau. É cheio em tripa grossa (sempre de porco), formato recto, e de massa mais pãozeira e com menos carnes que a das alheiras. Outras denominações: alheirão, chouriço azedo, palaio de pão, gaiteiro, chouriço de papas, alheira dos pobres ...e outras”.

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Já o chef Nuno Dinis, autor do indispensável Entre Ventos e Fumos, regista que a receita leva “carne magra, cabeça e entremeada de porco bísaro, pão de trigo, azeite, colorau picante e sal (por vezes leva sangue e alho)”. Sangue, que, garante-nos o chef Belmiro de Jesus (restaurante Belmiro), a avó, no Fiolhoso (Murça) usava nos azedos. Mas, para nossa tranquilidade, ainda bem que, no dia do tal jantar, desconhecíamos esta história do sangue como hipotético ingrediente.

Os azedos do Pitacas

Posto isto, o leitor que queira provar a iguaria estará baralhado. Compreende-se. Mas tem três soluções. Uma, socorre-se de um amigo transmontano; duas, vá passear entre Mirandela, Macedo de Cavaleiros, Vinhais e Bragança e tenta a sua sorte e, três, confia na nossa sugestão e encomenda azedos à Vifumeiro, de Vinhais, que distribui o enchido por várias localidades do país. Os azedos feitos com a supervisão de Jorge Humberto (mais conhecido na região como Pitacas) são de uma variante mais simples, no sentido em que a massa é feita para a ocasião, não leva colorau e as carnes desfiadas são apenas de porco.

Para a sua preparação à mesa, tudo muito simples. Escalda-se em água o enchido durante três a quatro minutos. Depois, ou vai inteiro para a grelha ou corta-se em rodelas e selam-se de cada lado, até que caramelizem e ganhem uma crosta alourada. Se o leitor permite – e sem querer ofender os amigos transmontanos – pincelar ligeiramente cada uma das faces das rodelas do azedo com um pouco de mostarda Dijon suave dá outra alma ao azedo que nem sempre vem assim tão azedo, mas, enfim, já são manias.

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Jorge Humberto e os seus azedos na Vifumeiro dr

Fundamentais mesmo são os grelos, as batatas (de preferência da variedade Kennebec e criadas no Barroso) e azeite transmontano virgem extra, do bom e embalado como deve ser, porque, se não for mesmo do bom, quem arma agora um pé-de-vento somos nós. Era só o que faltava estragar os grelos e companhia com um azeite tulhoso, daquele que está no garrafão de cinco litros, da colheita passada, a ganhar ranço na despensa. Há limites, caramba.

Antes de chegar a pandemia, Justa Nobre organizava todos os anos, em Lisboa, no Nobre, um jantar de butelos, casulas, azedos e outras iguarias. Todos os transmontanos emigrados apareciam. O mais ilustre dos convidados era Adriano Moreira, que dizia sempre umas palavrinhas no início da cerimónia. Numa dessas ocasiões falou da felicidade de estar rodeado de conterrâneos, até porque “a mesa é o único espaço onde os transmontanos estão todos de acordo”. Aqui, o saudoso professor que nos fazia levantar da cama cedo para garantirmos um lugar sentado no anfiteatro onde nem as moscas se ouviam – é capaz de ter exagerado um bocadinho. Transmontanos de acordo à mesa?! Isso nunca vimos.

A Vifumeiro vende azedos a cerca de 9€ o quilo. Tel.: 273 771 193

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