Uni é o novo bar de cocktails de Lisboa, é one woman show
Constança Cordeiro inventou o Uni porque “precisava de não saber para onde ia”. Desafiou-se e, para este bar na rua d’O Século, com apenas nove lugares, criou bebidas com 10 ou 15 ingredientes.
Tal como em Alice no País das Maravilhas havia uma festa de desaniversário, no Uni, o novo bar de Constança Cordeiro (da Toca da Raposa, em Lisboa), as bebidas ambicionam exibir uma “desindentidade”.
A palavra não existe, mas isso não impede Constança de a usar quando nos tenta explicar o que é que a levou a lançar-se nesta aventura. “Precisava de criar alguma coisa para me desafiar. Não que tivesse perdido a vontade de trabalhar, mas às vezes torna-se demasiado fácil. Precisava de não saber para onde ia. Para fazer uma coisa verdadeiramente nova, precisamos de não saber para onde estamos a ir.”
Desde que a conhecemos, no final de 2017, quando preparava a abertura da Toca da Raposa no ano seguinte, que Constança é assim, inquieta, sempre em busca de algo novo, surpreendente – curiosamente, não é a primeira vez que, num texto sobre o seu trabalho, nos lembramos do universo de Alice no País das Maravilhas.
Vinda de bares de Londres, onde trabalhou e aprendeu a explorar as ligações entre ingredientes inesperados, desafiou-nos várias vezes na Toca, onde nos levava a descobrir sabores inesperados nas R&S Sesh ou nos propunha experiências com street food japonesa, entre muito mais nos últimos anos.
Mas desta vez quis ir um pouco mais longe. “Uni significa uni-sabor, e o início do processo criativo foi criar alguma coisa sem pegar numa referência”, explica. “É difícil.” Está no espaço exíguo do Uni (criado pelo XXXI Studio), e vai falando enquanto serve os cocktails aos clientes que se sentam nos nove lugares à volta do bar – uma mesa de uma borracha trabalhada para imitar pedra, com um tampo de inox recortado, peça de João e Carolina Parrinha, da Softrock.
Não seria possível estarmos mais próximos, mas a ideia é mesmo essa: este é um “one woman show” e Constança é garantia de que estaremos sempre entretidos. Criadas as bebidas, o seu papel é, acima de tudo, o de anfitriã. “Comecei por pegar na cor, porque as cores não têm sabores, não é? Bom, podemos pensar que o branco é cremoso ou que o vermelho é doce, mas isso não é real. A cor vermelha não tem um sabor.”
Decidiu começar pelo preto. “Como é que vou fazer uma bebida preta? Na Toca tenho uma base de dados com umas 300 receitas e consigo olhar para um ingrediente e pensar qual a melhor maneira de extrair sabor.” Para o preto, usou o alcaçuz. Depois, pôs-se a somar outros que fizessem sentido, como num colar de contas. “O que é que vai bem com alcaçuz? Framboesa. E o que vai bem com framboesa? Um tipo de hortelã de que gosto muito. E o que vai bem com ela? Flor de sabugueiro.” E assim a bebida ia-se construindo.
Chegou aos 15 ingredientes, que primeiro testou em partes iguais, para de seguida começar a experimentar em diferentes proporções. Ultrapassado o desafio, surgiu, inevitavelmente, outra ideia: “Fazer uma bebida que soubesse quase a água, que fosse fresca mas neutra, mas também forte”.
Numa terceira, resolveu comprar todas as frutas de que se lembrou e descobrir o que dava – no processo, percebeu que a pitaia tinha “uma cor incrível”. Noutra ainda, o desafio foi experimentar “tudo o que temos na Toca”. E por aí fora, num exercício de geometria variável, que pode evoluir a partir de um ponto, ou de três pontos, ou, simplesmente, ziguezaguear ao sabor da criatividade, tal como o desenho, uma linha ondulante e orgânica, na carta onde estão descritas as bebidas.
Quem olhar para a carta do Uni vai ter apenas pistas: o Daykaito, por exemplo, é “umami, frutado, terroso, guloso”, o Seetch é “limpo, puro, fresco, surpreendente”, o Nupit é “floral, aromático, frutado, fumado”, o Temprem é “verde, vegetal, aromático e nutty”. Podemos pôr-nos a adivinhar o que cada uma tem, ou podemos simplesmente entrar no jogo e aceitar a “desidentidade”.
Neste one woman show, a playlist é igualmente feita por Constança e pode ir, como no dia em que a visitámos, do Yellow Submarine dos Beatles ao Hello, I Love You, dos Doors. Ou, noutro dia, explorar “pop japonês e Prince”, ou mudar para country, “porque isto puxa muito para [a série televisiva] Westworld” – tal como a “farda” branca de Constança é inspirada “na estética do [livro e filme] Dune”. E, diríamos nós, as cortinas brancas que nos fecham no pequeno espaço do bar poderiam vir [da série de David Lynch] Twin Peaks, escondendo, para lá delas, um mundo eventualmente desconcertante. Constança provavelmente não pensou em Twin Peaks (pelo menos não falou disso) e diz apenas que quis que “a sensação que se tem aqui dentro seja leve”, mas que o espaço seja “ao mesmo tempo dramático”.
Não importa que as referências que nos vêm à cabeça sejam diferentes das dela. O que importa é que o Uni é uma espécie de cápsula suspensa na noite, que pode estar aqui, na rua d’O Século, em Lisboa, ou já ter sido projectada para o espaço sideral connosco no interior. Uma cápsula onde uma rapariga de cabelo pintado de loiro serve bebidas de cores vivas, ou sem cor alguma, numa festa de “desaniversário” – que, como sabemos, pode acontecer todos os dias que não sejam os do aniversário.