O Sentido David pressupõe uma grande viagem e ajudar quem mais precisa

Em 2020, David Freitas fez 5000 km até Catió, Guiné-Bissau, onde deixou um jipe, ainda hoje usado como ambulância. A aventura Ambulance for Hearts repete-se em breve. São “pequenas atitudes”, diz.

PROFESSOR DAVID FREITAS QUE VAI LEVAR UMA AMBULANCIA ATE A GUINE BISSAU
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David Freitas vai levar uma "ambulância" até à Guimé-Bissau ADRIANO MIRANDA
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Imagem da aventura de 2020 David Freitas

Anabela podia ser um nome fictício para falarmos da taxa de mortalidade infantil da Guiné-Bissau e daquela criança anónima que em cada 12 não sobrevive até ao quinto aniversário. Mas a fotografia de Anabela andou mesmo na carteira de David Freitas, que até passeou com a bebé, que acabaria por falecer pouco depois de ter apresentado sintomas de diarreia e vómitos. É por esta e por outras que o professor vai voltar a conduzir cinco mil quilómetros entre Gondomar e Catió.

Esta é a história de David, 47 anos, professor de Informática do Agrupamento de Escolas nº. 1 de Gondomar, cliente habitual das tertúlias do Espiga, no Porto — quando lá apresentou a sua primeira viagem, tinha no currículo "duas idas a Gaia e uma a Coimbra" —, e assumido "antiviajante", que é como quem diz "aquele que sente que a vida é difícil, mas que mesmo assim continua a não querer estar parado". Gosta de dizer que "viagem há só uma" e que nós é que a "cortamos aos bocadinhos". "Estamos constantemente a viajar. E não só quando fazemos a compra de um bilhete", expôs à Fugas David Freitas, que este sábado, 21, muito provavelmente munido do seu ukulele e do hino Ninguém, Ninguém [poderá mudar o mundo], de Marco Paulo, apresenta no Espiga (no dia de aniversário do espaço, onde semanalmente damos a volta ao mundo sem sair do sofá) O Sentido David, a viagem de uma vida que começa com um espermatozóide.

David, professor de 47 anos com ar de aventureiro adolescente, nasceu em França e por isso as suas primeiras viagens iam de "França a Portugal" e de "Portugal a França". Mais recentemente, foi-se "metendo em aventuras" — como aquela em 2012 que o levou aos Açores a bordo do veleiro Crioula e "apesar de não saber nadar" — até o Mongol Rally lhe ter dado a ideia de uma viagem solidária: "Arranjar uma viatura que fosse verdadeiramente útil e oferecê-la a quem precisa." O plano surgiu numa fase da vida em que David se metamorfoseou. "Vivi grande parte da minha vida a achar que tinha mérito em tudo o que fazia. E às tantas percebi que era muito sortudo e que tinha que devolver essa sorte. E não é muito fácil. Primeiro porque sou muito medricas e depois porque sou licenciado em Ciências de Computadores, uma aptidão que de pouco serve em África e em muitos sítios onde nem sequer há electricidade..."

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"Não sub-valorizo qualquer pequena coisa" DR

Surgiu então em conversa a Casa da Mamé, um orfanato em Catió, Guiné-Bissau, e a ideia de conduzir até lá uma ambulância ou algo do género que fosse usado como transporte do hospital. E o plano Ambulance for Hearts lá se pôs em marcha em 2020, Fevereiro pré-pandemia, tendo oferecido um Hyundai Galloper ("ninguém lhe disse que não era uma ambulância e, até agora, tem-se comportado como tal"), que viajou com 500 latas de leite de substituição materno, um bem que se torna essencial perante os frequentes casos de morte da mãe ("às vezes mãe de quatro ou de cinco") durante o parto. "Uma lata de leite custa dez ou 12 euros tanto cá como lá, onde o salário mínimo ronda os 80 euros — para quem tem salário."

Confrontado com "números terríveis" ("são oitenta mortes em cada mil nascimentos", sublinha David), um dos seus grandes objectivos é hoje o de "incentivar à acção" e de transformar as viagens em "viagens pedagógicas", multiplicando-se o pedagogo bem-disposto em "conversas" em escolas, mostrando às crianças em Portugal que são umas privilegiadas. "Costumo dizer-lhes que quando saímos de Portugal para Este, o mundo é mais ou menos igual. Mas que quando vamos para Sul, o mundo muda muito rapidamente: o acesso à educação, à saúde, a tudo..." Uma das suas grandes bandeiras é aquilo a que chama de effective altruism. "O altruísmo eficiente. O mais importante é fazer alguma coisa", traduz.

"Podemos ajudar onde estamos, mas também no outro lado do planeta." Uma coisa não invalida a outra. "É como perguntar se gostas mais do pai ou da mãe. Não devia sequer ser uma pergunta", sublinha, alertando, contudo, para os "perigos" do "volunturismo".

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Foram cinco mil quilómetros entre Gondomar e Catió David Freitas

Da primeira vez, em 2020, com licença sem vencimento, partiu à aventura com Rogério Cruzeiro, um amigo também informático ("Se houvesse um problema, a solução era sair do carro e voltar a entrar", sorri) numa jornada que demorou dez dias ("dois de paragem, um para repor energias, outro por questões mecânicas"), e por Catió ficaram um mês até serem obrigados a voltar num voo de repatriamento em contexto pandémico. Usaram um crowdfunding de apoio ao projecto que agora repetem para a segunda etapa do Ambulance for Hearts, prestes a levar à mesma região uma ambulância, que desta vez se quer verdadeira — ou pelo menos capaz de transportar crianças utentes do Centro de Educação Especial e Terapêutica (CEET) que está a ser construído pela Na Rota dos Povos e que dará apoio gratuito a 40 crianças com necessidades especiais, nas vertentes do diagnóstico e tratamento, da educação e da alimentação. "Numa zona do país em que não existe uma rede de transportes, é fulcral uma viatura adaptada", justifica David, desta vez membro activo desta ONG, que no terreno apoia 49 escolas. "Cá somos todos voluntários, lá somos os maiores empregadores de Catió."

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Em 2020, a jornada demorou dez dias David Freitas

Sente-se inspirado pelas crianças guineenses, pela sua "capacidade incrível de solidariedade" e resiliência apesar dos "quilómetros que têm que fazer para ir à escola", onde "a maior parte dos professores não recebe [salário] há imenso tempo". "Os miúdos cá ficam surpreendidos por lá as crianças não terem acesso a água ou electricidade pública, por não terem uma coisa tão vulgar para os meus alunos como o telemóvel carregado."

Quem já assistiu a uma das suas apresentações dentro do círculo dos viajantes — aquela no último Exodus foi memorável e terminou com a plateia a aplaudir em pé —, sabe que o humor é uma das ferramentas à disposição de David. "Ajuda-me a combater o meu medo, insegurança e debilidades. Tudo o que eu faço, faço com medo", admite o viajante solidário que antes de o ser já se tornara dador de sangue. "Sempre quis doar sangue e tenho pavor a agulhas. Mas a primeira coisa que fiz antes desta aventura foi doar sangue. 'Não faz sentido sem doar sangue'. E desde então sou dador regular. Duvido que haja uma coisa tão eficiente como esta."

"Pequenas atitudes", diz. "Chegar a casa e dar um abraço à mãe ou ao pai. É um acto efectivo de mudança do mundo. Não subvalorizo qualquer pequena coisa."

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O relógio, o amuleto e o ukelele David Freitas
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