50 anos depois, Amílcar Cabral está esquecido e está na moda
Colóquio sobre Amílcar Cabral mostrou que o herói da luta pelo fim do colonialismo une e divide, emociona e inspira. Foi um homem complexo e contraditório. O seu legado também é assim.
Uma aposta: nunca esteve num colóquio de académicos onde a assistência e os oradores riram e choraram. Foi o que aconteceu nos dois dias de Amílcar Cabral e a História do Futuro, que encheu um auditório da Assembleia da República, em Lisboa, e que, por ter esgotado a lotação, foi transmitida em live streaming no Facebook.
Cinquenta anos após o seu assassinato, a 20 de Janeiro de 1973, em Conacri, Cabral, líder da luta pela independência de Cabo Verde e da Guiné-Bissau, emociona, une e divide.
“Ele é incómodo, representa inquietação. Por isso ainda o estudamos”, disse Pedro Pires, comandante da luta armada ao lado de Cabral, que foi primeiro-ministro e Presidente de Cabo Verde após a independência. Para Pires, “Cabral teve um papel histórico singular: a aceleração do passo do tempo histórico.” O que é isso? “É quando vamos mais depressa e, em vez de marcharmos, corremos.”
A conferência começou na sexta-feira com um discurso de Augusto Santos Silva, presidente do parlamento, e acabou este sábado com uma performance de Prétu, estrela do hip hop português, e uma festa no B.Leza. Falaram mais de 30 especialistas, muitos dos quais historiadores. Foi organizada pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, o Instituto de História Contemporânea (NOVA-FCSH) e a Cultra.
Dos trabalhos, emergiu o Cabral complexo e contraditório que fez os títulos dos obituários dos jornais internacionais após o assassinato: “rebelde gentil”, “diplomata combatente”, poeta e agrónomo, guerrilheiro moderado, líder que “fala suavemente, mas fala a linguagem da revolução”, “humanista radical”, homem da acção e da teoria, intelectual que escreveu 106 textos, uma “taxa de produtividade” que tê-lo-ia feito um “candidato ideal a professor catedrático” na Universidade de Oxford, disse o historiador Mustafah Dhada.
Emergiu também o contraste entre o esquecimento que muitos sentem existir hoje na Guiné-Bissau em relação a Cabral e o boom do interesse que desperta na academia.
Cabral esquecido?
Na Guiné-Bissau, Cabral é “ignorado e esquecido” e não é uma referência para os jovens (disse Carlos Cardoso, investigador e fundador do Centro de Estudos Sociais Amílcar Cabral). Há um “apagamento na esfera pública” (disse Sílvia Roque, professora de Relações Internacionais na Universidade de Évora). A sua fotografia saiu das notas, o seu nome saiu da toponímia e nem o aeroporto de Bissau tem o seu nome — chama-se Aeroporto Internacional Osvaldo Vieira.
Muitos notaram também que o Mausoléu Amílcar Cabral está na fortaleza José de Amura, em Bissau, onde está o Museu Militar — e objectos que Cabral usou nos anos da luta armada — e como até essa homenagem o esconde. Na fortaleza funciona o Estado Maior das Forças Armadas guineense e, por isso, para se visitar o mausoléu, “é preciso pedir autorização aos militares” (disse o sociólogo guineense Miguel de Barros).
Da assistência, Gerhard Seibert, antropólogo alemão, contou como ficou surpreendido quando, em 2006, foi a Bafatá, na Guiné-Bissau, ver a casa onde Cabral nasceu. “Estava completamente abandonada, a cair, com uma árvore a crescer por dentro, que já tinha rebentado o telhado.” Seibert também foi visitar o mausoléu e notou o “descuido”, “tudo cheio de poeira”, e viu que, “ao pé do mausoléu, estava uma caixa de madeira, uma oferta de Cuba, com uma estátua de Cabral, e era óbvio que estava ali há anos.”
Jovens guineenses na assistência discordam e sublinham que Cabral está, pelo contrário, bem presente na Guiné-Bissau: do rap aos murais, da nova poesia aos debates dos jovens e dos políticos, das T-shirts com o seu rosto a memorabilia pop diversa, Cabral está vivo, dizem. Duas intervenções de académicos, de Barros e de José Neves, historiador da Nova, mostraram isso.
Consenso? Nem sobre a morte
Quando se fala de Cabral, há pouco consenso e há muitas dúvidas e nuvens. Ainda se discute quem o matou — sabe-se que foram colegas do próprio PAIGC que dispararam os tiros. Mas que papel teve a PIDE e o Estado colonial português? O tema continua aberto.
O comandante Pires, assim tratado por muitos, foi taxativo: o assassinato “vil”, “criminoso”, “miserável” e “ignóbil” de Cabral foi “comanditado pelo Governo colonial e organizado pelos sequazes da PIDE/DGS [Polícia Internacional e de Defesa do Estado/Direção-Geral de Segurança] e demais agentes do colonialismo, planeado enquanto última ‘solução militar’ de salvação do império em risco de derrocada.”
O jornalista José Pedro Castanheira, que investigou o crime durante anos, disse que, nos arquivos, não se encontram provas disso e contou que, quando apresentou o seu livro sobre o crime em Cabo Verde, foi acusado de tentar “branquear” o papel de Spínola e da PIDE/DGS.
A historiadora Ângela Coutinho, da Nova, pediu “muita atenção às fontes”, porque há arquivos em África que nunca foram estudados, muitos documentos foram destruídos e a omissão nos arquivos da PIDE não é sinónimo de não envolvimento. “Durante dez anos, a PIDE fez conjecturas sobre o assassinado de Cabral e, quando o crime se dá, não encontramos nenhum comentário sobre isso. Estes silêncios interpelam-nos. Há limpezas de fontes, há coisas que não são ditas.”
Foi Coutinho quem trouxe o tema do boom na academia, que não se repercute na representação ocidental da Guiné-Bissau, dominada pelo desapontamento e o rótulo de “Estado falhado” e “narco-Estado”.
Na academia é o oposto. Há alegria e entusiasmo. Entre 1963 e 2020, foram publicados 450 trabalhos científicos sobre Cabral, do Egipto à Suécia, passando pela Austrália e o Japão, muitos dos quais são recentes. “Já se fala do ‘renascimento de Cabral’”, disse Coutinho.
“Houve um surto nos últimos 15 anos, com uma média de dez artigos científicos publicados por ano sobre o legado de Cabral. Já existe o conceito de ‘cabralismo’. Cabral continua a ser estudado por políticos e activistas e, na academia, é estudado em história, ciências políticas, ciências sociais, estudos africanos, estudos estratégicos, filosofia, antropologia em dezenas de universidades.” Um investigador está a estudar a relação entre Cabral e Aristóteles, outro publicou um ensaio que a historiadora gostava de ler, mas é em japonês e ainda não foi traduzido.