É hipócrita acusar Ministério Público de atrasar investigações, diz Lucília Gago
Falta de funcionários judiciais leva procuradora-geral da República a exigir reuniões com altos responsáveis da justiça. Sem meios autonomia do Ministério Público é ilusória, avisa PGR.
A procuradora-geral da República, Lucília Gago, considera hipócrita responsabilizar o Ministério Público pelos atrasos nas investigações, quando é conhecido o cenário de carência de meios técnicos e humanos com que se confrontam os procuradores.
Perante uma “generalizada e insustentável falta de oficiais de justiça” que “compromete, de forma muitíssimo severa, a tramitação de processos e o regular funcionamento da justiça”, a dirigente máxima do Ministério Público deixa um repto no sentido do urgente agendamento e realização de reuniões regionais com a presença de altos responsáveis do Ministério da Justiça, “com foco na imediata superação de uma situação de cuja gravidade é aberrante duvidar”.
"Caberá dar corpo, sem delongas, a uma reforma que permita resolver os problemas de afectação de recursos humanos, abandonando estados de negação que constituem entropias do sistema", acrescentou.
Lucília Gago, que falava na cerimónia de abertura do ano judicial, a decorrer esta terça-feira no Supremo Tribunal de Justiça, em Lisboa, não poupou nas palavras, que visaram sobretudo o poder político. “A mera proclamação da autonomia do Ministério Público face ao poder executivo não basta. Impõe-se que a tal proclamação corresponda substantivamente algo que tarda — a criação de condições efectivas que não condicionem, de forma severa, a prossecução das competências e atribuições desta magistratura”, avisou. Sem autonomia financeira, essa proclamação é ilusória.
E acrescentou ser fácil, cómodo e conveniente para muitos apontar o dedo a estes magistrados quando o desfecho dos inquéritos se atrasa anos a fio. “A hipocrisia não parece ausente nalgumas dessas invocações”, atirou Lucília Gago. Para em seguida elencar os obstáculos com que esta magistratura se debate: “O acervo de equipamentos e ferramentas da área digital ao dispor da Procuradoria-Geral da República e do Ministério Público não se mostra compatível com as exigências que os tempos modernos colocam”.
“Não importa falar do admirável mundo novo da inteligência artificial e dos ganhos por essa via alcançáveis sem cuidar de tratar das prementes necessidades que a nível informático se fazem sentir e que condicionam o funcionamento da máquina judiciária”, observou, numa clara referência ao discurso que têm assumido os governantes da Justiça, virado para um choque tecnológico que na prática não tem tido condições para avançar.
Mas as críticas não ficaram por aqui: “Num país pobre e de fracos recursos, é impensável e imperdoável desperdiçar a oportunidade de aproveitar fundos europeus para que o Ministério Público ganhe avanço no domínio das tecnologias, de que tão carenciado se encontra". Uma ideia que já expressa pelo Presidente da República no que ao uso dos fundos europeus diz respeito, quando avisou a ministra da Coesão de que não lhe perdoaria se malbaratasse estas verbas.
Mas nem só de falta de meios se fez o discurso da procuradora-geral da República, que já por várias vezes abordou publicamente o problema. Reconhecendo a falta de prestígio de que sofre hoje o mundo da justiça, em especial no que respeita aos complexos, volumosos e arrastados casos mediáticos, a principal dirigente do Ministério Público pediu uma revisão dos principais diplomas ou segmentos legislativos no domínio da organização judiciária e do direito penal e processual penal que restaure a confiança dos cidadãos no sector.
No que à actividade delituosa concerne, Lucília Gago destacou a continuação da tendência de aumento da cibercriminalidade, cuja investigação se vê agora dificultada pela declaração de inconstitucionalidade da lei dos metadados. Declaração que "provocou grandes convulsões, geradoras de muitas dúvidas e incertezas que não estão resolvidas".
E defendeu ser premente combater o desregulamento do uso do solo no que ao urbanismo e ao ordenamento do território diz respeito, "não só pelas repercussões no presente mas principalmente pelas que certamente terá no futuro". Aqui, a estratégia do Ministério Público deverá passar pelo diálogo com as entidades administrativas — licenciadoras, fiscalizadoras e inspectivas — com competências na matéria.