Calhou-me em fantasia o milagre da Virgem Maria

Nunca percebi se aquela fantasia correspondia ao desejo de ser considerada santa ou à sensação permanente que trazia desde a primeira infância de ser culpada sem um motivo claro e concreto.

Foto
Unsplash

Aos 12 anos, e depois de ter visto na televisão o filme Agnes de Deus, acreditei que estava grávida. Eu era virgem tal como a freira noviça que protagonizava o filme, e ambas estaríamos grávidas do Espírito Santo, uma pomba branquíssima que ia aparecendo ao longo da narrativa.

A jovem freira, segundo a Madre Superiora, fora alvo de um milagre como acontecera à mais célebre das virgens, a mãe de Jesus, a Virgem Maria. Na sequência do suposto milagre de Agnes, um bebé é encontrado morto, enforcado no cordão umbilical dentro do caixote de lixo do quarto da noviça. É então enviada para o convento uma psiquiatra ateia – interpretada pela actriz Jane Fonda, muito popular nos anos 1980 –, para ajudar a polícia a resolver o enigma da concepção da impresumível virgem.

O mistério resolveu-se em deslouvor da jovem, tida desde o início da investigação como louca pela polícia, mas que faz hesitar a psiquiatra dado o seu comportamento inocente a as investidas e insistência da Madre Superiora em que fora "tocada por Deus". Vem a descobrir-se, contudo, que a noviça não tinha sido alvo de intervenção divina mas do abuso de um padre. Um túnel subterrâneo ligava o convento ao seminário dos sacerdotes e, através dessa ligação abaixo da terra, padres e freiras encontravam-se para quebrar os votos de celibato. Nada mais literal do que estar sob o solo para mostrar a ligação ao submundo dos supostos cândidos e cândidas da Igreja.

Apesar de ter visto como o mistério do milagre se tinha resolvido, continuei a acreditar por semanas que devia estar grávida sem ter uma explicação. Se acontecera à mãe de Jesus porque não poderia ter-me sucedido a mim? Obviamente, o que eu sentia não passava de uma fantasia de alguém muito inocente e que receava vir a ser culpada de algo sem esclarecimento. Sabia que nunca acreditariam em mim, sobretudo os meus pais, que o fenómeno seria inexplicável e que por isso a minha reputação de menina honesta, a minha imagem de responsável, se transformaria em farsante.

Durante esse mês adormecia com a mão sobre a barriga, tentando perceber como ia arranjar um argumento para aquela gravidez divina. Acreditava até que a barriga estava maior, o que se deveria ao facto de estarem a ocorrer inúmeras transformações no meu corpo, nomeadamente a vinda recente da menstruação. Nunca percebi se aquela fantasia correspondia ao desejo de ser considerada santa ou à sensação permanente que trazia desde a primeira infância de ser culpada sem um motivo claro e concreto.

O certo é que tudo terminou com a chegada da menstruação daquele mês. Quando vi as cuecas manchadas de sangue percebi que não estava grávida do Espírito Santo. Se por um lado fiquei aliviada, muito aliviada, por outro terminava ali o desejo de ser especial, a escolhida, mesmo que tivesse de carregar a culpa e a injustiça como acontecera a tantas outras mártires da História. A vinda do período naquele mês destruiu a minha ambição inconsciente de ser inocente para o resto da vida.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários