Urgências - para além do caos
Precisa-se de estratégia para acção porque política com táctica mas sem estratégia é pesadelo, perda de tempo e desperdício de recursos e vontade.
Urgências hospitalares com doentes classificados muito urgentes e urgentes acumulados em salas de espera durante 5 a 10 horas até observação médica foi um cenário repetido à saciedade pelos media. Serviços de urgência ou consulta aberta hospitalar, sem marcação prévia? Em tempo de paz e sem catástrofe o doente urgente não pode esperar 5 ou 6h para observação e terapêutica, seja qual for o sistema de triagem ou o hospital. É preciso perceber o que se passa.
Daí o apelo aos dirigentes hospitalares para clarificar duas realidades que me parecem cruciais. Primeiro, como estão a funcionar as vias verdes para o enfarte do miocárdio e para o AVC? Emperraram? Houve doentes que perderam oportunidade de tratamento? E as roturas de aneurisma da aorta abdominal? Consideremos situações urgentes tipificadas, indicadores comparativos entre instituições. Por exemplo qual o tempo de espera para doente com i) fractura ou luxação articular até observação pelo ortopedista ii) dor torácica, que desde enfarte, embolia pulmonar ou uma pneumonia pode ser tudo iii) falta de ar por crise asmática, por exemplo iv) hemorragia digestiva até à observação médica. E quais os resultados? Maior mortalidade que em período homólogo anterior? As nossas instituições não privilegiam uma cultura de avaliação permanente – governação clínica é o termo. Será missão impossível no emaranhado da diversidade de sistemas e métodos de registo de informação? Mas importante saber por duas razões. A primeira, para tranquilidade e confiança dos cidadãos, a segunda, para melhoria da eficiência dos serviços.
Nada tenho contra os sistemas de triagem, importantes para disciplinar a procura e organizar a resposta. Recordo a sala de directos e a triagem menos sofisticada dos maqueiros com olho – como no passado, no Hospital de S. José, hoje substituídos pelos técnicos de emergência, com mais e melhor formação. O objectivo era o mesmo: quem estava realmente mal passava à frente. Será que o jornalista se fizer este tipo de perguntas para melhor compreensão da realidade, encontrará eco e interlocutor com informação criteriosa e séria?
Tudo o que verdadeiramente interessa e é importante é frequentemente menorizado, perante a insustentável simplificação da cultura mediática. E uma consequência decorrente: melhor aproveitar a maré, enquanto dura o interesse público. O que assistimos nos últimos dias foi exemplar. Há uma agenda que sendo importante e a merecer discussão profunda, surgiu desfocada no modo e no propósito.
Qual o objectivo? Novos médicos com uma nova especialidade para funcionar e ultrapassar necessidades neste modelo de urgência e com esta organização? Ou, pelo contrário, criar uma carreira própria para dotar as Unidades de Cuidados Intensivos e Reanimação nos hospitais do país com especialistas dedicados a esses cuidados? O que a emergência médica contempla são as situações que põem em risco a sobrevivência dos doentes ou causam incapacitação na ausência de tratamento adequado e imediato. O sucesso depende de três regras i) prontidão do diagnóstico ii) manutenção de funções vitais iii) diálogo e orientação para unidade especializada, funcionante 24h/7d com resposta pronta e organizada. Se as duas primeiras serão atributos e exigência da formação de clínico no serviço de urgência, a terceira depende de cartografia actualizada dos Centros de Referenciação e de Trauma e da sua capacitação profissional e duma rede eficaz de transporte de doentes. Quanto melhor e mais linear for a articulação entre a equipa médica de urgência e os diferentes especialistas, maiores as probabilidades de sucesso.
Urgência e emergência são indissociáveis do acervo científico e da capacidade técnica de qualquer especialidade, da cultura de cada tribo profissional. Nem sempre timing mediático é oportunidade ou tempo para a acção necessária! Esteve bem o Colégio de Medicina Interna ao discordar da proposta e não agiu por corporativismo, mas sim na defesa da unidade essencial da Medicina Clínica. E uma interrogação: o futuro emergencista assumiria a desobstrução das artérias no enfarte do miocárdio ou nos AVC, as roturas de aneurisma arterial, as oclusões intestinais etc., qual Dr. House da série televisiva, ou prudentemente recorreria ao especialista, que além do conhecimento e a cultura da tribo terá experiência e expertise?
Sabemos que as Urgências são problema antigo e difícil. Pertenço à geração que cresceu profissionalmente com o SNS, que construiu e lutou pela afirmação de muitas das especialidades médicas e cirúrgicas no nosso país. Mas considerei sempre indispensável preservar a unidade essencial da Medicina e não promover separação artificial da Urgência desse todo. Sem reorganização da Medicina Ambulatória, com capacitação dos Centros de Saúde para intervenção de proximidade e regulação efectiva do acesso aos serviços de urgência hospitalar não haverá solução. E educação para a Saúde das populações de modo a ultrapassar a percepção pública da urgência hospitalar como porto de abrigo para qualquer situação. E obviamente atender aos problemas da carreira profissional dos médicos, sem o que nos arriscamos à falta de protagonistas. Longo caminho a percorrer.
Precisa-se de estratégia para acção porque política com táctica mas sem estratégia é pesadelo, perda de tempo e desperdício de recursos e vontade.