O Pai Natal existe?

Quem somos nós para estragar essa vontade de magia, confrontando as crianças com uma realidade que têm tanto tempo à frente para descobrir?

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"O problema é quando nos confrontam diretamente com a pergunta: o Pai Natal existe?" __ drz __ /Unsplash

Acreditar e deixar de acreditar no Pai Natal não é assim tão simples nem tão linear como possa parecer. Ao princípio, as crianças acreditam no Pai Natal com uma fé inabalável e num estado de encantamento à prova de qualquer desilusão. Nas cartas ao Pai Natal, pedem tudo quanto imaginar se possa, convictas de que este ser mítico pode atender todos os seus desejos.

Quando tentamos que nivelem as expetativas por baixo, não percebem a razão: então o Pai Natal não pode dar tudo aquilo que se quer? Há um limite de pedidos para fazer ao Pai Natal? Os duendes não podem dar uma ajudinha para tornar todos os sonhos realidade?

A primeira desilusão acontece quando as crianças percebem que o Pai Natal não oferece tudo quanto tinham pedido. Em conformidade, no ano seguinte, já fazem por escolher as prendas que realmente preferem, na tentativa de que os seus desejos mais prementes sejam atendidos.

Há um nivelamento das expetativas, que não deixa de causar inquietação. Percebendo que optar é excluir, as listas mudam todos os dias, ao sabor das preferências, da publicidade e das conversas com os amigos. Não parece fácil chegar à lista final e ainda menos estabilizar a mesma.

Lembro-me de um aluno do 1.º ano, o André, que todo orgulhoso por já saber escrever, apareceu na aula com um catálogo de uma loja de brinquedos, para servir de inspiração à escrita da carta para o Pai Natal. Muito expedito, escreveu a lista dos presentes, colocou o respetivo preço à frente e só me chamou para o ajudar a adicionar as parcelas. Disfarcei a vontade de rir, enquanto tentei explicar-lhe que não é necessário colocar preços nas cartas, pois o Pai Natal não vai às lojas comprar os presentes. Ele fabrica os brinquedos com a ajuda dos duendes.

A segunda desilusão é quando as crianças começam a suspeitar que o Pai Natal, afinal, não existe. Tirando as desilusões mais repentinas, que acontecem quando descobrem que aquele senhor de barbas brancas que lhes apareceu em casa na noite de Natal é o pai, o tio ou o avô mascarado, ou quando algum amigo mais crescido lhes revela cruamente a verdade, os outros desencantamentos são mais progressivos e lentos.

Geralmente, estas dúvidas insinuam-se gradualmente, provocando alguma ambivalência: por um lado, começam a perceber que o Pai Natal não existe; mas, por outro lado, ainda gostam de acreditar na sua existência. É como se quisessem prolongar um bocadinho – só mais um bocadinho … − a magia da infância.

Quando assim é, quem somos nós para estragar essa vontade de magia, confrontando as crianças com uma realidade que têm tanto tempo à frente para descobrir? O problema é quando nos confrontam diretamente com a pergunta: o Pai Natal existe? Sim ou não? Foi precisamente o que me aconteceu com a turma do André.

Para organizarmos o nosso trabalho de projeto, estávamos a fazer o levantamento de questões de todos os alunos, para podermos pesquisar a informação necessária para lhes dar resposta. No meio de perguntas relacionadas com a origem do mundo, os planetas do sistema solar, a extinção dos dinossauros, o aparecimento dos mamíferos, a evolução do homem, a história dos automóveis e as viagens espaciais, entre outras, apareceu a fatídica pergunta sobre a existência do Pai Natal.

As opiniões dividiam-se: uns acreditavam piamente que sim, que o Pai Natal existia mesmo, claro que sim, como era possível duvidar de tal certeza? Outros afirmavam que não, que os primos mais velhos já lhes tinham dito que o Pai Natal não existia e que, no ano anterior, tinham descoberto que as botas que o Pai Natal tinha calçadas afinal eram iguaizinhas às do avô!

Aqueles 25 pares de olhos virados na minha direção, esperavam de mim uma resposta definitiva para a contenda, que desse definitivamente razão aos crentes ou aos descrentes. As crianças que ainda acreditavam no Pai Natal pretendiam obter de mim a validação da sua crença, enquanto aquelas que tinham deixado de acreditar desejavam que eu confirmasse a sua descoberta. O que fazer? − perguntei a mim própria, sem vislumbrar a resposta.

Validar a verdade correspondia a desiludir aqueles que ainda acreditavam ou desejavam acreditar no Pai Natal. Mas fugir à verdade não estava, de modo algum, em cima da mesa. Encontrava-me num beco sem saída: não podia dizer que sim, nem tão pouco que não.

Neste dilema, achei que só havia uma solução. E a solução passava por adiar a resposta à pergunta. Enquanto isso, ia ganhando tempo, antecipando que este adiamento jogaria a meu favor. Resolvi colocar a questão em último lugar na lista de perguntas a responder e, como as perguntas eram muitas – tal como a curiosidade dos alunos −, o ano letivo chegou ao fim sem que conseguíssemos dar resposta a todas as questões. Ainda para mais, na altura do Verão, a existência do Pai Natal não estava no topo das prioridades das crianças…

O Verão passou, voltámos à escola no 2.º ano e empenhámo-nos em dar resposta às perguntas que faltavam. Quando chegámos à questão do Pai Natal, estávamos em dezembro e já não era possível contornar o assunto. Já não havia mais nenhuma pergunta na nossa lista… só faltava a última! Quando me preparava para começar a falar, o Zé Maria antecipou-se, dizendo que eu era muito esperta. Surpreendida, devolvi-lhe a questão, perguntando por que é que ele achava que eu era tão esperta.

O Zé Maria tinha a resposta na ponta da língua: “Já percebi tudo! A nossa questão foi colocada no final da lista para nos dar tempo para descobrirmos que o Pai Natal não existe. Agora, que já sabemos, já não precisa de nos dizer.” Ri-me e disse ao Zé Maria que quem era muito esperto era ele, porque era mesmo isso que eu tinha feito. Tinha procurado ganhar tempo para evitar desiludir as meninas e meninos que ainda acreditavam no Pai Natal. O meu truque estava descoberto!

Com cumplicidade, disse-lhes: “Mas agora não estraguem a magia aos vossos irmãos e amigos mais novos. Cabe-vos dar-lhes tempo para que descubram por eles próprios. Combinado?” Sim, estava combinado. Empoderados por terem passado para o lado dos mais crescidos, que já não acreditam no Pai Natal, trocaram olhares de conivência, com um ar terno e protetor: não, não eram eles que iriam revelar a verdade aos mais pequenos. Iam fazer o mesmo do que eu: iam dar-lhes tempo…


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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