Sozinho e bem acompanhado

Estar sozinho é normal. Sentirmo-nos bem sozinhos é estar bem resolvidos. Ir ao cinema ou fazer uma refeição sozinho é normal.

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"A frieza do pensamento lógico não tinha lugar naquele diálogo" JOSÉ COELHO/Lusa/Arquivo

No outro dia comentei com um amigo que já fui dúzias de vezes sozinho ao cinema. Fi-lo depois de ouvir os seus lamentos sobre as agruras de estar divorciado:

– Não sei o que fazer quanto tenho tempo livre. Um gajo não vai ao cinema sozinho, não é? – lamentou-se.

– Mas tu vais ao cinema para ver o filme ou pela companhia? – perguntei-lhe, omitindo que já fui ao cinema pelas duas razões por si só e também pelas duas em simultâneo. – Estar sozinho é normal. Sentirmo-nos bem sozinhos é estar bem resolvidos. Ir ao cinema ou fazer uma refeição sozinho é normal. É, simplesmente, ir ver um filme ou fazer uma refeição. Pode ser ou não uma ocasião social – conclui, convicto de que a racionalidade da minha argumentação o animaria.

O meu amigo ficou em silêncio. Sozinho nos seus pensamentos.

Prossegui. Afinal, fora ele que procurara a minha ajuda.

– Olha, uma vez, num Dia dos Namorados, fui jantar fora sozinho. Não foi uma picardia contra os casais de namorados, nem nada disso, simplesmente não me apetecia cozinhar. Cheguei ao restaurante e, junto à porta, havia um enorme quadro de ardósia onde estava descrita a ementa temática dos namorados: pão, azeitonas, manteiga normal ou de alho, uma bebida à escolha, Bacalhau à Brás ou Bifinhos com Cogumelos, e Tiramisu ou pudim de ovos. Já a salivar por um combinado de bacalhau e pudim de ovos, entrei e sentei-me numa mesa, decorada de acordo com a efeméride. Por piada, soprei a vela. Olhei à volta, e constatei que o sítio ainda estava vazio. Era cedo. Aguardei. Ao fim de dez minutos à espera, enquanto observava os empregados à conversa atrás do balcão, percebi o que se passava e acenei com entusiasmo para chamar um dos empregados. Uma jovem aproximou-se. Trazia um avental vermelho com um cupido a disparar uma seta na minha direção. Instintivamente, desviei-me. Não era a hora nem o lugar para me apaixonar.

– Pode trazer-me um bacalhau e um copo de vinho branco, por favor? – pedi.

– Mas não está à espera de companhia? – perguntou-me

– Não, por hoje, a minha basta-me – gracejei.

Virou-me costas e foi para trás do balcão. Após um curto diálogo com um senhor mais velho, que presumi ser o dono do restaurante, regressou:

– O patrão pergunta-lhe se pode comer ao balcão? As mesas estão preparadas para os namorados – explicou, enquanto acendia a vela que eu apagara.

– Mas ainda não há namorados…

– Devem estar a chegar – disse com uma certeza que temi pelos seus dotes de adivinhação.

Levantei-me e sentei-me num banco alto ao balcão. O bacalhau não demorou. Estava bem confecionado e a dose era generosa. O pudim também estava delicioso. Olha, voltei lá mais vezes!

O meu amigo ouviu a minha história de olhos postos em mim, mas sem a mínima reação. Ao perceber que eu terminara, encolheu os ombros e fez um trejeito com a boca que revelava impaciência. Percebi naquele instante que toda a minha argumentação lhe entrara por um ouvido e saíra pelo outro. A frieza do pensamento lógico não tinha lugar naquele diálogo. Era o momento de me calar e de o deixar sozinho com o que lhe ia na cabeça. Abracei-o e fiz menção de ir embora.

– Combinado, depois falamos! – exclamou.

"Está a despachar-me", pensei.

– Olha, não queres ir ao cinema? – sugeri, sem ponta de ironia.

– Hoje não, prefiro estar sozinho.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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