Sinais exteriores de gentileza: um roteiro em redor de Famalicão
A terra é generosa. Tanto faz brotar água em abundância como dá alimento a vinhos cheios de complexidade e transborda a fartura para a mesa. Mas há mais riquezas a descobrir no território de Famalicão
Em dias de chuva, tudo parece mais molhado, não há por onde refutá-lo. No entanto, apesar do dilúvio que cai lá fora, Avelino Barros assegura que água não é um problema na Quinta da Casa da Torre, mesmo nas temporadas mais enxutas.
As minas da propriedade, disposta por andares numa encosta cheia de tons de verde, garantem que o rumor da água corrente é banda sonora habitual na Adega Casa da Torre – é até parte da estratégia de gestão de recursos naturais.
O jovem enólogo de sorriso fácil aponta os tanques de granito junto do edifício de pedra e madeira de austrália, e a torneira que corre para o espelho de água ao longo de uma das paredes laterais, como exemplos do uso deste recurso abundante para a regulação da temperatura da adega com reduzido gasto energético.
Manuel Artur Sousa Lopes gosta de aparecer por ali, apesar de estar já reformado. Avelino chama-lhe patrão, ele responde, “Patrão, agora, é o meu filho. Eu já não sou nada aqui.” Gosta de passar, ver o trabalho, mandar os seus bitaites (que são bem mais do que apenas bitaites, entenda-se), meter conversa com os visitantes. Mas retira-se mal lhe apontam uma câmara. Perfil discreto para o homem que ajudou a erguer uma das adegas mais vistosas da região.
“Tive de puxar pelo arquitecto”, atira, meio a brincar, sem perder o ar sério. Tanto ele como Gonçalo Sousa Lopes, o filho/patrão, tinham em mente aquilo que pretendiam fazer para transformar as modestas casitas de arrumos da quinta num elegante edifício que delicia apaixonados por arquitectura.
O resto, um grande “resto”, foi o trabalho do arquitecto Carlos Castanheira, que também assinou a intervenção na Quinta da Faísca, propriedade dos Sousa Lopes no Douro. Aliás, foi de lá que veio o balseiro que deu forma ao laboratório, originalidade saída da cabeça de Manuel. “O Gonçalo e o pai gostam muito de madeira, como se pode ver”, atira Avelino.
Se está ou não a falar também no sentido do vinho, fica por averiguar. No portefólio da casa, feito de “brancos sérios e gastronómicos” (à excepção do colheita tardia de petit manseng), há pelo menos uma referência – o Sousa Lopes Reserva, encorpado e complexo com notas de banana madura, coco, limão em rebuçado, carimbado q.b. pelo tempo de barrica – que leva a entender que será, pelo menos, um perfil bem-vindo na garrafeira da família.
“Todo o estômago bem regulado produz um génio”
A profusão de madeiras casa também com o gosto da família Amorim. Ou, pelo menos, com o de Daniela, filha de Manuel Amorim e Ângela Cerejeira, e autora do projecto de arquitectura que transformou a antiga casa da Quinta das Pirâmides num hotel de charme que tanto consegue ser elegante como acolhedor.
O piso térreo, onde ficam a recepção, a sala de estar e uma bem-vinda lareira, separadas da sala de refeições pela garrafeira transparente, é enquadrado por tectos e paredes em ripas de riga. No andar de cima, que tem cinco dos seis quartos da casa – todos com nome de obras de Camilo Castelo Branco, lá iremos –, a recuperação revela ainda mais graça.
No lugar de restaurar tudo como se o tempo não tivesse passado, Daniela Amorim decidiu pôr à vista, onde pôde, o esqueleto da casa. Os tabiques que delimitam os quartos foram despidos de reboco, deixando exposta a trama de madeira. O tecto do corredor desapareceu, o que permite ver todo o pé direito até ao telhado. E os tectos de alguns dos quartos foram deixados com a madeira de castanho despida de tinta, a combinar com os soalhos de tábua. O mobiliário tem também traço da arquitecta e, conta Manuel com redobrado orgulho, “foi construído na carpintaria da quinta”. Em parte, com madeiras fornecidas pela propriedade.
A hospitalidade é apenas uma das vertentes da pirâmide. Manuel e Ângela, um engenheiro informático e uma professora de inglês e alemão, compraram a quinta em 2010. “Estava tudo caído, mas apaixonámo-nos logo por isto, pelo potencial, pela beleza, pela dimensão”, confessa Manuel. O objectivo era a exploração de kiwis, mas numa viagem à Califórnia descobriram o potencial do mirtilo. Hoje, em 4 dos 16 hectares da propriedade, produzem 20 toneladas, destinadas sobretudo à exportação.
Perceberam, também, que a quinta tinha “características excepcionais para a produção de vinho”, e Manuel, apaixonado confesso pelo assunto, aproveitou a deixa. “Toda a gente me dizia que o vinho tinha de ser bebido no ano”, recorda, orgulhoso pela teimosia de quem já “percebia que vinham características diferentes com o tempo”. “Queria um vinho nobre”, resume. Hoje, com uma produção anual de 20 mil litros, impõe-lhes um tempo mínimo de um a dois anos até à introdução no mercado. Nos 5 hectares de vinha, o alvarinho está em vantagem, secundado por loureiro e trajadura.
Os vinhos, esses são elegantes, gastronómicos, propensos a ir “crescendo” no copo à medida que se vai provando. Em querendo, a prova faz-se acompanhar de uma tábua de delicadezas locais, que inclui broa, enchidos da quinta, queijos de Famalicão, compotas caseiras (maçã e mirtilo são exemplos), trufa de chocolate com o Alvarinho Reserva da casa e, para concluir, licor de mirtilo. Uma prova com sentido de lugar – tanto mais se o dia estiver radiante e se puder dar bom uso aos terraços da casa, debruçados sobre o vale.
Camilo também se terá debruçado sobre este vale, na novela A morgada de Romariz (1876), parte do políptico Novelas do Minho. Manuel e Ângela não o sabiam quando compraram a propriedade, mas ao descobrir fizeram disso brasão da casa, em cooperação com a Casa de Camilo, em Seide. Levantada a ponta do véu da curiosidade na Quinta das Pirâmides, essa é a morada seguinte a visitar. Além de funcionar como casa-museu – o escritor viveu ali entre 1864 e o dia em que se suicidou, em 1890 –, é também biblioteca, Centro de Estudos Camilianos e pórtico para a descoberta da Rota Camiliana.
Parte dessa rota faz-se também à mesa. Afinal, “Todo o estômago bem regulado produz um génio”, escreveu Camilo, citado na parede da sala de refeições da Quinta das Pirâmides. A recriação dos pratos que povoam o imaginário da sua obra foi transformada em menu pelo chef Renato Cunha, que o serve, por reserva antecipada, no restaurante Ferrugem, um ovni de alta cozinha na aldeia vizinha de Portela.
Talvez “ovni” não seja a descrição mais justa para o trabalho de Renato Cunha, que se distancia dos ingredientes “alienígenas” para focar o olhar nos produtos de proximidade. E a sala de refeições, de paredes em granito e lareira acesa nas noites frias, também traduz o ambiente acolhedor de aldeia. A cozinha, porém, está num patamar que deixará de queixo caído quem não souber ao que vem.
Ao cabo de 16 anos, o Ferrugem continua a ser “uma pedrada no charco numa aldeia com 600 habitantes”, diz o chef, que, mesmo tendo demonstrado pela prova do tempo que este restaurante não só é viável como é desejável no território, admite: “Acho que ainda continuam a chamar-me maluco.” Desde o primeiro momento, “sabia que queria uma coisa diferenciadora”, com uma identidade inicialmente mais colada ao registo tradicional, mas que pela via do estudo e da experimentação foi evoluindo para o que é hoje.
O pensamento de Renato Cunha assenta num triângulo por si definido, com vértices na narrativa, na técnica/conhecimento e, no topo, o produto. “Sei que se tornou cliché falar de produto, mas é fundamental.” Preocupa-o o produto “autêntico, genuíno”, como o nabo-de-Gândara, que é simultaneamente mais picante, mais amargo, mais doce – “Mais tudo!”, resume. Foi uma dor de cabeça encontrar quem ainda o produzisse. Ou a feijoca-branca, que “ninguém tinha”, e resolveu produzindo ele na horta dos pais.
Trabalhar os “produtos mal-amados e dar-lhes o carinho que merecem” é, mais do que apenas lema pessoal, “uma ignição para o processo criativo”. Renato fala depois do peixe que todos os dias vai buscar a Angeiras (Matosinhos), da carne fornecida por um talho de Famalicão que se abastece de gado local de pasto, dos vegetais que vêm de um produtor de Joane e de outro ainda mais próximo. “Acredito cada vez mais na política de quilómetro zero.”
Esse princípio está vincado também na carta de vinhos, na qual mais de um quarto corresponde a referências da região dos Vinhos Verdes (nos brancos, são quase metade da lista), com atenção a “pequenos produtores, vinhos diferenciadores e colheitas mais antigas”, com um firme propósito de “desmontar preconceitos”. Acredita também na escolha de “vinhos honestos”, defendendo que “não é só com grandes trunfos que se ganha”.
A escolha de pratos à carta está disponível, mas os menus de degustação são o modo indicado de perceber o que é o Ferrugem – lá está a componente narrativa acima referida.
Surge o figo pingo-de-mel conservado em calda numa entrada com queijo de cabra, acelgas e mostardas, surge a sardinha, marinada e braseada, acompanhada de cebola em cinco preparações (compota, caramelizada, picle, areia e jus), a mostrar que a simplicidade pode ser uma coisa complexa. E depois a sopa de pescado, riquíssima, gulosa, com vários protagonistas, mostra como se pode elevar a fasquia daquilo que já era perfeito em si mesmo. Há um bacalhau com puré em que o puré é o elemento central. E uma pré-sobremesa que junta o tal nabo que é “mais tudo” em chutney com um queijo São Jorge de 24 meses, abrindo caminho para um sorvete de abade de Priscos que refresca a boca e aquece a alma.
O lume vivo que acalora a sala, esse povoa também o imaginário do chef, que todos os anos organiza o #IrComSedeAoPote, evento que junta cozinha lenta em fogo de chão, vinhos extraordinários e convívio gastronómico ao ar livre, quando os dias voltarem a estar propícios a isso.
Terra de abundância
Lá fora, a água continua a cair. De regresso à Quinta das Pirâmides, ela brota por todo o lado – um embalo que persiste mesmo quando as nuvens se dissipam. Tal como na Casa da Torre, a natureza aqui é pródiga. A propriedade dispõe de 13 minas de água e um caudal interminável que alimenta vários tanques, cada um a verter para o seguinte, depois para um espelho construído em redor de um pomar – há ali recantos de leitura com sombra natural e água em redor – e por fim uma cisterna de granito feita piscina, cercada de mirtileiros.
A água, aliás, parece ser riqueza abundante no concelho de Famalicão, que tem quatro rios a atravessá-lo – Ave, Este, Pele e Pelhe. Mas o território também é abundante noutras riquezas – nomeadamente, riqueza em sentido estrito. Essa riqueza brota, por vezes, em acções que excedem o tempo e o lugar de quem as empreende. Um bom exemplo disso é a Fundação Cupertino de Miranda, instituída em 1963 pelo banqueiro famalicense Arthur Cupertino de Miranda e pela sua mulher, Elzira Cupertino de Miranda, e que é hoje um pólo cultural multifacetado que inclui biblioteca, um museu assente num acervo significativo do surrealismo nacional e uma exposição permanente dedicada à literatura portuguesa, bem como um edifício icónico que se levanta como um farol no centro da cidade – não há como perdê-lo de vista, basta estar atento aos painéis de azulejos da autoria de Charters de Almeida, que são de uma escala impressionante.
Já que se anda pelo centro de Famalicão, não se dará por perdido o tempo se se espreitar pelo menos este par de moradas. Primeiro, o Mercado Municipal, que fica logo ali, do outro lado da Praça Dona Maria II, e foi recentemente renovado, a tempo de assinalar o seu 70.º aniversário. Vai-se lá para admirar o edifício e o trabalho de recuperação, mas também para espreitar o Mercado dos Lavradores, a praça da alimentação (onde cabem brunch, street food, sushi, cozinha italiana, mas também petiscos em português) ou o pequeno wine bar na lateral que faz também as vezes de restaurante.
O segundo ponto a marcar no mapa fica um pouco deslocado da Praça Dona Maria II, mas chega-se lá em menos de 10 minutos a pé. Ponto prévio: boas pastelarias é coisa que, felizmente, não é uma raridade nas cidades portuguesas. Esta, porém, é diferente, muito diferente. À Marupiu Pâtisserie não se vai à procura dos clássicos bolos de arroz, croissants e outros que tais. Ou melhor, ainda há quem vá, mas rapidamente percebe o engano.
O que Ana Patrícia Correia faz na pequena cozinha que se esconde lá atrás aproxima-se mais de joalharia comestível. Peças de aspecto tão perfeito e apurado que quase dá pena estragar com o garfo. Mas não há que ter medo. Já houve quem comentasse, recorda Rui Gusmão, marido de Patrícia e rosto da loja, “É tão bonito que não deve saber bem”. Pois, confie-se: os sabores e as texturas estão tão bem arrumados lá dentro como o arranjo visual exterior.
A lista de sobremesas disponível ronda a dezena, assente numa carta de temporada de 14, 15 variedades, que muda um par de vezes por ano. Depois, há as edições especiais, para toda a sorte de efemérides: dos imprescindíveis dias dos Namorados, da Mãe, do Pai, a outras mais particulares como Domingo de Ramos ou o americano Thanksgiving. Tudo somado, cumpridos cinco anos de Marupiu, “já tivemos umas 300 sobremesas”, contabiliza Rui. As receitas são originais de Patrícia, que admite a necessidade de estar sempre a mudar, a rotina de fazer todos os dias as mesmas coisas não a alicia. “O importante é divertirmo-nos”, conta a ex-engenheira mecânica que hoje não se vê a fazer outra coisa.
A companhia para estas sobremesas passa pelos chás e infusões, mas também pelos vinhos, sobretudo referências de “edição limitada, que não se repitam”, explica Rui, “tal como as sobremesas”. Há um par de referências regionais, porém são os champanhes e os whiskies que estão em plano de destaque – aliás, a Marupiu funciona também como uma garrafeira ultra-criteriosa. Se vista de fora faz lembrar uma loja de jóias ou de alta relojoaria, é porque se percebe à distância: à Marupiu vai-se em busca de preciosidades.
Da indústria para o mundo dos vinhos
Retomando o tema da riqueza, e a título ilustrativo, sublinhe-se este dado estatístico: entre os municípios portugueses, Famalicão é o terceiro que mais exporta, logo a seguir a Lisboa e a Palmela (leia-se Autoeuropa), com um volume superior ao de países como a Suazilândia ou a Guiana.
A pujança do tecido industrial gera uma disponibilidade de capital que transborda depois para outros empreendimentos. Nomeadamente na área dos vinhos. A Têxteis Manuel Gonçalves é proprietária da Casa de Compostela, a Vieira de Castro lançou-se com a Encostas de Melgaço, a Louropel, referência mundial na produção de botões, tem também uma marca homónima de vinhos. E José Ferreira Cortinhas, proprietário da têxtil Lima e Companhia e proverbial self-made-man, comprou o Casal de Ventozela em 1978, não só para ali ter residência como para colher frutos – leia-se, uvas para venda – desta quinta com origens no século XIX.
A produção de vinho veio depois, “a ver como corria”, com o decano Fernando Moura a bordo – que ainda hoje assina, com Pedro Campos, a enologia da casa. Correu bem, como se adivinha, seguiu-se a aposta no mercado nacional. Até que André Miranda, genro do fundador e homem da gestão, entra em cena, em 2012, e, perante o volume de sobras, reorienta a estratégia para a exportação. Hoje, o mercado externo representa “90% das vendas” da empresa, com o Norte da Europa, os Estados Unidos e o Japão à cabeça.
As boas-vindas estão por conta de Andreia Silva, responsável pelos pelouros de comunicação e enoturismo, e dona de um sorriso contagiante. O ponto de partida é a loja da quinta, um espaço cheio de luz natural e de madeira, com vista para a sala de barricas e dupla função como balcão de provas. Polivalência parece ser mote da casa, que além de produzir os seus vinhos trabalha também como centro de vinificação para produtores com pequenas quantidades, uma espécie de incubadora de empresas de vinhos – o portefólio desses microprodutores está também exposto nas estantes, a par da prata da casa.
Na visita à vinha de Mogege, uma das dez que compõem os 50 hectares de produção da Ventozela, junta-se André Miranda. “Trajadura, arinto, loureiro, padeiro de Basto”, enumera, enquanto manobra por entre as linhas de vinha um Land Rover com uns bons anos em cima. Pára numa parcela de espadeiro, a casta que lhe faltava enumerar e aproveita-se uma nesga de sol para fazer um retrato mais luminoso.
“Como a vinha é fechada, há pessoas da vizinhança que vêm cá deixar ovelhas e cavalos”, explica o administrador da empresa, quando a conversa vai parar à sustentabilidade. “Ao mesmo tempo que pastam, limpam ervas e fertilizam o solo”, completa, assumindo uma política de minimização da intervenção química na vinha. A biodiversidade é disso reflexo. “É comum encontrarmos raposas, perdizes, coelhos, javalis, corvos.” A respeito de alterações climáticas, estima um futuro mais promissor para o alvarinho, “poderá ser a casta que se irá adaptar melhor”.
Na mesa de provas, o alvarinho é apresentado num monocasta com um pouco de barrica (10%), de grande frescura e persistência, mas também no porta-estandarte Prime Selection, que, detalha Andreia, “Só se faz quando achamos que temos o vinho certo para fazê-lo”. O ano no rótulo corresponde ao engarrafamento, já que junta colheitas diferentes: 2017 tem avesso com um ano e alvarinho com dois; 2019 acrescenta ao alvarinho (de 2016) e ao avesso (de 2017), ambos com barrica, um lote de loureiro (2018) estagiado em inox.
Dois vinhos distintos, porém ambos sérios, estruturados, pensados para a mesa – e que traduzem, confessa André, a preferência pessoal de quem os faz. Na prova não faltam os queijos e charcutaria, mas a melhor forma de testá-los é dar-lhes companhia de substância.
Mesa generosa
É hora de almoço, e a primeira sugestão que vem à cabeça de André Miranda é o Dom Henrique, a 5 minutos dali, em Joane. Há que escutar as recomendações de quem conhece os sítios. Ainda mais, se o nome for reincidente: já de véspera, a família Amorim, da Quinta das Pirâmides, tinha apontado este restaurante tradicional como um dos favoritos da casa. Só se dá mal quem escolhe ignorar conselhos avisados.
“Boas doses, boa comida e uma rapidez invulgar”, resumia Manuel Amorim. Não falhou em nada. Mas comecemos pelo sítio em si, que este é daqueles que merecem descrição. A sala é ampla e simultaneamente acolhedora, e as paredes estão cheias de motivos para tirar os olhos do telemóvel enquanto se espera: uma colecção de chapéus, outra de garrafas antigas de gasosa, canecas de faiança, galos de Barcelos de várias cores e feitios que “são peças únicas, peças de autor”.
A legenda é de José Henrique, o “dom” que dá nome à casa. O negócio, esse é assunto de toda a família – também ali estão a mulher, Natália Martins, que circula entre as mesas e a cozinha, bem como o filho, a filha e o genro, que oficiam nos fogões.
Natália contextualiza: “A quinta pertencia a um tio e isto era uma eira.” O chão torto, com lajes de granito desgastadas, é desse tempo. Natália aponta para a sala ao lado, mais pequena, “Começámos aí, com cinco mesas, no celeiro da quinta”. Hoje, corridos 36 anos, sentam 130 pessoas, sem contar a esplanada.
A cozinha, aberta para a sala de refeições, consegue garantir caudal suficiente para alimentar tanta gente sem grandes demoras, em parte pela ementa simplificada, comida de tradição com inclinação para os pratos de tabuleiro, somada a uma coreografia de sala bem ensaiada. Quem chegar indeciso pode sempre espreitar por cima do balcão e deixar que sejam os olhos a escolher pela barriga.
As pataniscas de bacalhau chegam à mesa ainda o cliente não se acomodou à cadeira. O bacalhau regressa à cena poucos depois – frito e servido com escabeche, num aproveitamento das abas feito sem perder a suculência (e que por si podia justificar a viagem).
Para o bacalhau à D. Henrique fica reservado o centro da posta, afogado em batatas fritas em rodelas grossas. A posta de boi grelhada é de dose igualmente generosa, mas também pode haver cabrito assado no forno, costelinhas de javali, rojões à minhota com papas de sarrabulho. À sobremesa, leveza para quem a quiser, com um inesperado mil-folhas de mascarpone e frutos vermelhos. Ou então a intensidade açucarada do pudim de pão. Ricos somos todos nós enquanto tivermos sítios onde comer assim.
Este artigo foi publicado no n.º 7 da revista Singular.