Paulo Raimundo compara Rússia a “cão atiçado” e questiona se “a culpa é do cão”
Em entrevista à Lusa, Paulo Raimundo fala dos problemas do PCP, da sua linha como secretário-geral, das suas experiências profissionais e da guerra na Ucrânia.
O secretário-geral do PCP, Paulo Raimundo, comparou, em entrevista à Lusa, a Rússia a um “cão atiçado” pelos Estados Unidos, NATO e União Europeia, e sublinhou que o partido nada tem a ver com as “opções do Governo russo”. Para Paulo Raimundo, a posição do PCP em relação ao conflito na Ucrânia é “simples e simultaneamente complexa”.
“Não há dúvida de que há uma intervenção militar russa na Ucrânia” que o PCP “não relativiza”, sustentou o novo secretário-geral do PCP, que recorreu a uma história de infância para ilustrar que o Kremlin foi instigado.
“Tenho um amigo de infância e a determinada altura — miúdos de seis, sete anos — ele tinha um cachorrinho. Então a brincadeira que se montou, que era uma coisa completamente absurda, era três crianças que à vez atiçavam o cão. Atiçavam o cão, quando o cão vinha para morder gritavam e o cão, coitado, baixava... A brincadeira era assim. Esse meu amigo, que era o dono do cão, quando foi a vez dele de fazer esse movimento de atiçar o cão, o cão deu-lhe 20 e tal dentadas. Ao dono! E a pergunta é: a culpa é do cão? O cão é culpado desse acto?”, elaborou Paulo Raimundo.
O dirigente do partido reconheceu que “esta história pode parecer um bocadinho absurda”, mas tem como finalidade “contextualizar” que os Estados Unidos, a NATO e a União Europeia “parecem os três meninos a atiçar o cão”. “É que não começou o problema em 24 de Fevereiro. Ele teve um escalar condenável nesse dia, mas não começou aí”, disse, afirmando que o PCP condenou “desde o princípio a intervenção militar russa, até por questões do direito internacional”.
“Aquela acção militar é condenável, desde logo à luz do direito internacional”, reforçou. “Nós não menosprezamos, nem relativizamos, a intervenção militar russa”, completou.
O secretário-geral do PCP lamentou que se tenha chegado ao ponto de ser necessário clarificar que o PCP “não tem nada a ver com o Governo russo": Não há nada que nos relacione com o Governo russo, nem de longe, nem de perto. Não temos nada a ver com as opções de classe do Governo russo. Estamos no dia-a-dia ao combate com essas opções”, advogou.
Paulo Raimundo considerou que a população ucraniana é a verdadeira vítima do conflito, uma vez que o número de refugiados “caminha para quase metade da população” — mais de 13 milhões desde o início da guerra — e é desconhecido o número total de vítimas mortais, e disse esperar que não haja “mais momentos de escalada”.
“Não podemos ficar à espera que nos venham bater à porta”
Sobre o PCP, Paulo Raimundo, reconheceu “insuficiências” na organização interna do partido e advertiu que os militantes não podem ficar à espera que lhes vão bater à porta. “Nós não podemos continuar a ficar à espera que nos batam à porta”, disse Paulo Raimundo, afirmando que a Conferência Nacional do passado fim-de-semana, em Corroios, teve como objectivo “animar” e incentivar os militantes a “tomar a iniciativa”.
Questionado sobre que “insuficiências” na organização interna foram identificadas, Raimundo referiu em primeiro lugar o recrutamento de novos militantes, frisando que dos dois mil que entraram recentemente a maior parte são “pessoas que dizem ‘nós queremos aderir'”. “(...) Temos organizações do partido que tem tudo muito organizadinho, com as quotas em dia, tudo organizado, mas com uma desligação ao meio de onde estão. Ou, por exemplo, de que vale uma comissão de freguesia, que tem as quotas em dia, ‘'Avantes! vendidos, mas depois passa ao lado dos problemas que as pessoas vivem naquela freguesia”, apontou.
“Consideramos que é preciso ir mais longe nas organizações do partido nos locais de trabalho, constatamos que não estamos a cumprir, a fazer o que precisamos de fazer no que, para nós, é uma coisa estratégica que é a ligação aos trabalhadores”, disse.
A pandemia também deixou as suas marcas no PCP. Apesar de o partido ter organizado um Congresso e uma Festa do Avante! em plena epidemia, notaram-se “debilidades” e organizações onde “a capacidade de resposta ficou mais enfraquecida”.
O dirigente do partido referiu que no último congresso, em 2020, havia cerca de 49 mil militantes e que, entretanto, aderiram mais duas mil pessoas, mas não revelou quantas saíram e qual é a contabilização actual.
Sobre a sua eleição como secretário-geral do PCP, Paulo Raimundo admitiu que “tinha uma opinião diferente” sobre o nome que deveria substituir Jerónimo de Sousa.
“É claro que não vos direi, não levem a mal, não vou confessar isso, mas eu tinha uma opinião diferente daquela que se veio a concluir”, revelou Raimundo.
Se é verdade que o secretário-geral comunista é “um desconhecido”, nas palavras do próprio, para a população em geral, “do ponto de vista do partido, no âmbito dos organismos de direcção, nas ligações no trabalho, são muitos anos de relacionamentos e de experiências concretas”.
“Admito que nessas relações de trabalho e também nas relações humanas os meus camaradas tenham olhado para mim com características que na opinião deles valiam mais do que propriamente a notoriedade”, completou.
Sobre os primeiros dias na qualidade de secretário-geral, Paulo Raimundo disse que tem tentado seguir o conselho que os camaradas lhe deram: “Há uma coisa que os meus camaradas me disseram, ‘não inventes’. E eu estou a levar isso muito à letra”, disse, entre risos.
Experiências profissionais curtas, mas intensas
O novo secretário-geral do PCP reconhece que foram curtas as suas experiências profissionais como carpinteiro e padeiro, mas sublinha que o ambiente em que cresceu o “habilita” à categoria de “operário” como o partido o apresentou.
Foram nove meses na carpintaria — “até dava um carpinteiro mediano” — e seis meses como padeiro, experiências “de facto curtas”, mas “muito intensas aliadas a uma realidade concreta”, disse, explicando que a classificação como operário, que deu alguma polémica, é feita a partir da forma como o PCP olha para a organização e composição da sociedade.
A classificação social atribuída pelo PCP aos dirigentes e funcionários tem a ver com o conjunto da experiência de vida: “Se eu tivesse estudado a vida inteira não seria um operário”, sintetiza. “E há um outro elemento que é o ambiente onde cresci. Nesse enquadramento, não quero ser injusto, mas quase de certeza que todos os meus amigos de infância e com quem cresci, nenhum deles teve a possibilidade de ir para a faculdade. A maior parte deles nem o nono ano tirou”, diz.
Também Paulo Raimundo terminou o ensino secundário já à noite e, nessa altura, a faculdade não era uma opção. Se tivesse tido possibilidade, teria ido para “belas-artes”, conta. Como exemplo do contexto social e económico em que viveu, na juventude, Paulo Raimundo, hoje com 46 anos, descreve: “Eu cheguei a receber em ‘tickets de refeição’, nem sei se ainda há. Eram uns títulos e trocava-se num restaurante ou num supermercado”.
E ainda outro exemplo que, considera, o identifica com as classes trabalhadoras: “costumo dizer que para mim não há economista melhor do mundo que a minha mãe. Nós trabalhávamos, eu, o meu irmão, o meu pai, e, no fim do mês entregávamos à minha mãe para ela fazer a gestão”.
Paulo Raimundo afirma não saber provérbios populares — marca d'água do antecessor Jerónimo de Sousa —, mas usa expressões “popularuchas” pelas quais pede desculpa na entrevista, quando avisou que não está como secretário-geral para “andar a encher chouriços”.
E ao que vem? “Não é olhar para o umbigo e pensar, em termos eleitorais, que arranjo se vai fazer. Não é isso, é olhar para os problemas das pessoas e abrir caminhos a um projecto alternativo. E para isso é preciso estar no poder, não andamos aqui, desculpem a expressão, a encher chouriços”.
Sobre como chegou à militância, Paulo Raimundo recorda momentos “marcantes do ponto de vista pessoal”, no início dos anos 90, em que viveu as lutas estudantis no ensino secundário, no bairro da Bela Vista, em Setúbal, contra a Prova Geral de Acesso.
“Eu terei tomado a decisão mais certa na vida, mas também a mais arriscada”, assume. Quanto à família, havia simpatizantes comunistas, mas não na sua casa. E foi Raimundo que levou “há pouco tempo” a mãe a filiar-se no PCP.