A minha primeira ideia de família é a de um cenário de guerra. Não havia dia em que não houvesse um ataque. Eu tentava escapar ilesa, passando-me muitas vezes por invisível, inalando o fumo dos cigarros dos meus pais sem me queixar porque naquela altura era normal.
Nos anos 1980 os pais fumavam junto dos filhos, fumavam na cama, no carro, onde calhasse. Ainda ninguém sabia muito bem quais eram os malefícios do tabaco, apesar de Anton Tchékhov ter escrito no início do século XX um monólogo com o título homónimo e em jeito de conferência sobre o assunto. Os meus pais não conheciam Tchékhov, não liam nem iam ao teatro, eu também não, e estou certa de que a maioria dos pais portugueses daquela geração nunca ouvira falar do texto do dramaturgo russo. O único livro que eu conhecia nessa altura era O Capuchinho Vermelho, uma narrativa que me traumatizou. Passei noites a conter a urina só para não ter de atravessar o corredor comprido da casa dos meus avós. Tinha a certeza de que a meio do corredor me iria deparar com o lobo mau. O lobo mau tal qual o tinha visto no livro ilustrado, que mais parecia um homem peludo com um boné e jardineiras vermelhas.
Nessa altura também tinha medo de vampiros e da minha avó. Numa dessas incursões nocturnas aterrorizantes, a caminho da casa de banho por não conseguir reter mais o chichi na bexiga, tive a certeza de ver a minha avó ao fundo do corredor. Gritei e acordei a casa inteira, excepto a minha tia F. que na altura era adolescente e nada nem ninguém a faria acordar a meio da noite. Os meus pais apareceram descalços e despenteados à porta do quarto, a minha avó com uma bata roxa e o meu avô só de cuecas brancas com a pança imponente à mostra ao fundo do corredor, todos alarmados com o meu grito.
«Mas que é que te deu?», gritou a avó, áspera como só um cacto pode ser. Expliquei, aflita, que tinha visto a avó ao fundo do corredor, na penumbra, a olhar para mim. Ninguém acreditava. «Está parva, a miúda? Eu estava a ver televisão.» Ver televisão era uma coisa que a avó tentava fazer a maior parte das noites, mas que lhe era impossível. Tive a oportunidade de confirmar algumas vezes. Adormecia em frente ao televisor, sentada numa cadeira de madeira sem apoio de braços, cruzando-os no peito, e com a cabeça inclinada para trás e a boca escancarada roncava por toda a casa.
Ninguém acreditou em mim, atribuíram a culpa do estranho episódio ao meu sonambulismo, coisa que tinha sido diagnosticada recentemente e que me assustava mais a mim do que aos outros. Que coisas poderia fazer enquanto dormia? Até hoje não sei se vi de facto naquela noite a minha avó ao fundo do corredor ou se a minha avó era a mistura de todos os medos — o lobo mau, os vampiros e as discussões e agressões diárias entre as pessoas da minha família.