Daqui a um mês, no Qatar, será preciso ter cuidado com o que se filma

O Mundial 2022 começa daqui a um mês e, a esta distância, os jornalistas e repórteres de imagem já sabem o que os espera: semanas de medição cuidadosa daquilo que mostram ao mundo.

Foto
Falta um mês para o início do Mundial de futebol no Qatar Reuters/HAMAD I MOHAMMED

Falta um mês para começar aquele que é, provavelmente, o Mundial de futebol mais polémico da história. A votação de atribuição da prova ao Qatar teve controvérsia, a banalização de um regime autocrático e de preceitos culturais arcaicos tem criado urticária e o atropelo dos direitos humanos na construção dos estádios foi a crème de la crème de tudo isto. Ainda assim, vai mesmo haver futebol no Qatar.

Diz-se que jornalistas, repórteres e fotógrafos são contadores de histórias, mas, durante um mês, esta premissa será um pouco subvertida – as histórias, para serem contadas, terão de respeitar preceitos governamentais estipulados por quem manda no Qatar. Serão contadas histórias, mas histórias controladas.

Para mostrarem o que se passará por lá, os jornalistas já sabem, a um mês do início da competição, que terão de medir ao pormenor o que vão querer mostrar ao mundo. Ainda que no caso do cidadão comum a regra seja semelhante, no caso das televisões e imprensa em geral existe um código de conduta que devem aceitar quando se candidatam ao visto especial para filmarem no Qatar.

A FIFA já disse estar a trabalhar com a organização do Mundial e com as entidades locais para tornar o trabalho das televisões livre e desprovido de qualquer tipo de restrição, mas, até ver, há regras para cumprir.

Ao fazer o pedido de autorização, o PÚBLICO pôde constatar as regras estipuladas (ver imagem em baixo), entre as quais a proibição de captação de imagens de zonas residenciais, edifícios do governo, universidades, locais de culto religioso e hospitais, bem como de casas privadas e empresas.

Foto
PÚBLICO

Mas nem tudo são más notícias. O código de conduta tem sido alterado nas últimas semanas, já que, neste momento, não surge nas regras a proibição de serem feitas filmagens dentro de locais de alojamento, apartamentos, hotéis ou casas privadas – algo que o Guardian avançou há alguns dias e que adensava a dificuldade de serem feitas reportagens sobre temas sensíveis como a exploração de trabalhadores ou as liberdades sexuais, já que quem queira filmar entrevistas com pessoas em recato já poderia estar, apesar dessa aparente privacidade, a incumprir regras.

Outra regra entretanto retirada, e que seria a destruição total da liberdade de imprensa, dizia que os jornalistas não poderiam fazer reportagens que pudessem ser “inapropriadas ou ofensivas para a cultura qatari ou os princípios islâmicos”.

Regras ambíguas

Apesar das alterações, a ambiguidade nas regras ainda é, para Jemimah Steinfeld, do Index on Censorship, ONG que promove a liberdade de expressão, um recurso propositado. “São um factor de preocupação e propositadamente ambíguas, para que as televisões acabem por ceder pela cautela”, apontou ao Guardian.

James Lynch, da FairSquare, grupo de defesa de direitos humanos, crê que daqui advirá um dilema para as televisões. “Vai ser incrivelmente difícil cumprir as regras, se até filmar perto de um edifício governamental viola os termos. Quantas organizações vão autorizar reportagens sobre questões sociais se isso as puder levar a tribunal?”, questiona.

A Federação Internacional de Jornalistas já lançou, entretanto, um comunicado no qual alerta que “embora as regras não proíbam reportagens de temas específicos, acabam por restringir os locais onde se pode filmar”. “Dessa forma, os media vão estar incapazes de investigar temas de interesse público como abusos de direitos humanos”, acrescenta.

Ainda no plano da ambiguidade está a tolerância perante demonstrações de afecto homossexual no Qatar. A Federação Inglesa de Futebol, a pensar nos seus adeptos, chegou-se à frente no diálogo com as autoridades qataris nesse domínio e aponta que tem a garantia de que vai haver tolerância, desde que os comportamentos não sejam desrespeitosos junto a mesquitas, por exemplo.

Ainda assim, a lei local que proíbe esse tipo de comportamentos não foi oficialmente suspensa nem foi dada qualquer garantia estatal de tolerância com adeptos gays no Qatar. Kate Barker, da LGB Alliance, organização que defende os direitos homossexuais, aponta mesmo que “o facto de a homossexualidade ser ilegal no Qatar significa que é bastante perigoso sugerir, sem garantias firmes, que os adeptos homossexuais estarão definitivamente seguros”. Daqui a um mês saberemos.

Sugerir correcção
Ler 10 comentários