A lição anual de Paulo Nunes e as coisas raras da Passarella

As apresentações dos vinhos da Passarella deveriam ser filmadas e usadas como modelo. Aulas de história ou de enologia, nunca são mais do mesmo. Até no lançamento do topo de gama da casa — onze anos após a vindima — os jornalistas tiveram direito a conhecer o vinho de uma casta que julgavam estar mais ou menos extinta.

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Paulo Nunes, enólogo da Casa da Passarella. ANABELA TRINDADE

Há enólogos que fazem grandes vinhos mas não têm o dom da comunicação (e por causa disso não vem mal ao mundo). Há enólogos bem-falantes, eloquentes, com gestos e discursos estudados, mas que, em matéria de vinhos, são mais do mesmo (são tremendamente soporíferos). E depois há uns tipos raros que fazem vinhos deslumbrantes e apresentam-nos com uma classe dos diabos. Paulo Nunes, da Casa da Passarella, está neste lote. Ele experimenta com uma liberdade que poucos enólogos têm, ele desenha o portefólio, ele arrisca, erra e segue em frente, ele planta castas secundárias e terciárias, ele recupera técnicas passadas, ele vai à história e como se não bastasse tem aquele ar blasé de se passear pela sala a perorar tranquilamente, qual velho professor de filosofia a encantar os alunos. É outra loiça.

O facto de as coisas lhe saírem de forma natural não significa que não estude bem a lição antes de se apresentar em público. No passado dia 12 de Outubro, e a propósito do lançamento do Casa da Passarella Vindima 2011, que nasceu a 11 de Outubro, o enólogo escolheu, em diferentes momentos, a sorte como elemento central do seu discurso. “Tenho a sorte de trabalhar numa casa com muita história”, “tenho a sorte de trabalhar numa região como o Dão”, “tenho a sorte de ter liberdade e tempo para experimentar”, “tenho a sorte de trabalhar com uma adegueira — a Lurdes que é a terceira geração de adegueiras a trabalhar na Passarella” e “até tenho a sorte de o perfil dos vinhos da Passarella estar naturalmente de acordo com as tendências actuais do mercado”. Só faltou acrescentar que a sorte dá um certo trabalho, mas isso, claro, ele nunca diria.

Antes de chegarmos ao Casa da Passarella Vindima 2011, passemos por duas novidades e duas reedições. Há cerca de um ano, a Passarella lançou um curioso branco de Uva-Cão. Produzindo uvas com muita acidez, os produtores colocavam esta casta nas estremas das propriedades, impedindo assim que quem passasse tivesse o desejo de se atirar aos cachos. Vai daí, ficou com esse atributo canino de guardadora das outras castas que estavam na vinha. A imaginação dos portugueses para dar nomes às terras é a que se sabe, mas, pelos vistos, vai tudo a eito.

Ora, este ano a brincadeira com novas castas caiu na Barcelo. Que se saiba, só haverá dois varietais da casta feitos em Portugal, este Fugitivo Barcelo 2021 e um outro da Quinta dos Roques, também no Dão (este produtor vinifica o Barcelo desde 2012 mas apenas nos anos em que a vindima dita uma boa colheita da casta). A partir de investigações de Paulo Nunes nos escritos de Cincinato da Costa, parece que em tempos recuados os brancos do Dão eram feitos maioritariamente com as uvas Dona Branca (no Douro conhecida como Jampal) e Barcelo.

A primeira casta dava volume e a segunda elegância. E não custa nada a crer, porque se há uma característica que cai bem a este Fugitivo 2021 é finesse. Já sabemos que o enólogo da Passarella abomina aromas de fruta aos saltos nos seus vinhos e, de facto, aqui só dá delicadeza, com um perfil que, de resto em quase todos os vinhos da Passarella, caminha sempre para as flores delicadas da tília e ervas secas. Com o aumento da temperatura, sentem-se algumas notas ténues de fruta tropical.

Agora, na boca, o que impressiona é a sua secura e a sua acidez, de tal forma que ficamos a coçar a cabeça por causa da ligação do vinho com a comida, coisa que se resolveu e bem uma hora e meia depois diante de uma entrada com “cenouras em diferentes texturas, bebida de caju, bombons de azeitona e tangerina”. Quem diria! Pelo arrojo, pelo risco, pela vontade de experimentar e pelo potencial de guarda do vinho, não se pode dar menos de 95 pontos a este vinho, que tem como preço recomendado 28 euros.

Para coisas mais complexas, temos o Fugitivo Curtimenta 2020, que é um branco feito à moda antiga, com engaço, cuba de cimento e oxigenações quanto baste. Resultado: algo bem fora da caixa, a levar-nos para notas resinosas, pinheiro ou até certos vinhos de Jerez. Salgado, seco e volumoso na boca, um tipo perde-se no tempo a falar do vinho. E vão 96 pontos (28 euros).

Ainda em brancos, o Vila Oliveira Encruzado 2019 é, como se sabe, uma referência da casta no Dão, mas que tem a particularidade de chegar ao mercado no momento certo para revelar toda a sua complexidade. As notas florais misturam-se com o trabalho de fermentação/estágio em barricas usadas, pelo que estamos perante um vinho untuoso e franco, mas também com notas resinosas. Leva 95 pontos (4 euros).

Agora, surpresa do dia, um Fugitivo Pinot Noir 2019 que, evidentemente, é IG Terras do Dão. Parece que, nos anos 30 do século passado, Mário Pato, enólogo da casa, usava o Pinot Noir como pé de cuba, no sentido de criar condições para fermentações tranquilas na adega. Era, digamos assim, uma ferramenta de trabalho que, quando o ano exige, ainda hoje é usada. Casta muito apreciada em qualquer parte do mundo, requer atenção do enólogo, quer no momento da vindima quer nos processos enológicos. Como diz Paulo Nunes, “com esta casta tanto se faz música clássica como a música mais popularucha”.

O vinho em causa, que resulta de uma fermentação em lagar de granito e 33 por cento do engaço, foge de facto de alguns Pinot que por cá existem, feitos como se fossem Touriga Nacional ou Syrah. É fresco, com notas de casca de frutos vermelhos e uma boca vegetal, mas se provássemos este vinho às cegas mais facilmente diríamos que era um lote de Cabernet Sauvigon com Merlot do que um Pinot Noir. Sim, por causa de algumas notas apimentadas. Será curioso acompanhar o vinho. Fica com 93 pontos (28 euros).

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Este ano, a brincadeira da Casa da Passarella com novas castas caiu na Barcelo, com este Fugitivo Barcelo 2021. Anabela Trindade

Por fim, o rei da festa. Depois da estreia em 2009, esta é a segunda edição do Casa da Passarella, no caso o Vindima 2011. Como se sabe, esse foi um ano que deu muito que falar, havendo quem falasse da vindima perfeita. Os exageros têm dessas coisas, bastou chegar a vindima seguinte para se concluir que uma coisa foi a perfeição para o vinho do Porto (coisa que só se verá daqui por alguns anos), outra, bem diferente, foi o que aconteceu com muitos tintos desse tal ano perfeito – excessivos, pesados e alcoólicos.

É evidente que nenhum dos adjectivos anteriores se aplica ao Vindima 2011. E porquê? Primeiro, porque vinhos assim não entram no radar do enólogo; segundo, porque estamos no Dão e na sub-região Serra da Estrela (viticultura de montanha), terceiro, porque resulta da co-fermentação de um lote vasto de castas (algumas brancas) e de vinhas velhas e, quarto, porque os responsáveis da casa cultivam a ideia de que o tempo em garrafa é determinante para a criação de um grande vinho.

O que impressiona é a juventude provocatória do vinho com 11 anos. Juventude, frutos de baga pretos, notas terrosas e uma certa rusticidade e mineralidade na boca. Prova-se uma, duas e três vezes e a expressão que nos ocorre é carácter. O carácter de um tinto do Dão à moda antiga, que ainda vai melhor em garrafa. Merece 97 pontos.

A Casa da Passarella é, por diferentes razões acima de tudo a disponibilidade financeira —, um caso especial no Dão e no país, mas deveria inspirar outros produtores em duas áreas precisas: a aposta em novas castas nacionais e o lançamento de vinhos com tempo de estágio, visto que Portugal não tem mercados secundários. Sim, sim, isso exige investimento e não é pouco. Certo, mas tem retorno (veja-se o caso da Real Companhia Velha em matéria de novas castas), desde que, claro está, se levante o rabo da cadeira para promover e trabalhar tais vinhos. Há casos nesta vida em que vale mais imitar do que inventar (parece que a isso se chama benchmarking). A Passarella é um deles.

Em Abril passado retirou-se a rolha antiga e colocou-se outra nova, só para evitar surpresas desagradáveis. Cada garrafa do Casa da Passarela Vindima 2011 custa 260 euros.

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