As creches pré-fabricadas de Samuel Gonçalves e os desafios de um futuro “eminentemente urbano”

Neste episódio de No País dos Arquitectos, falamos sobre a arquitectura pré-fabricada e as quatro creches em Lisboa projectadas por Samuel Gonçalves, do estúdio Summary. O podcast No País dos Arquitectos é um dos parceiros da Rede PÚBLICO. Segue-o no Spotify, Apple Podcasts ou outras plataformas.

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No 42.º episódio do podcast No País dos Arquitectos, Sara Nunes, da produtora de filmes de arquitectura Building Pictures, conversa com o arquitecto Samuel Gonçalves, do estúdio Summary, sobre o seu projecto de quatro creches em Lisboa – as primeiras a serem construídas com o sistema modular no país. Durante a conversa, o arquitecto dá a conhecer o projecto e desmistifica também vários mitos que, neste momento, estão associados à arquitectura pré-fabricada.

Ouve-se, muitas vezes, relatos de pais que são confrontados com a falta de resposta no acesso a creches economicamente acessíveis e de qualidade no país. As novas creches na cidade de Lisboa são as primeiras de um programa para edificar 60 novos edifícios de ensino pré-escolar, em todo o país, e poderão ser a solução para um problema que se tem vindo a perpetuar, durante as últimas décadas. Duas das creches serão frequentadas por 84 crianças e as outras duas terão capacidade para 42 lugares, dando assim alento às famílias que, tantas vezes, têm de matricular os seus filhos ainda antes de eles nascerem para conseguirem ter uma vaga.

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Logo no início da entrevista, Samuel Gonçalves explica o que distingue “os métodos tradicionais” dos sistemas de pré-fabricação. “No método corrente nós projectamos o resultado final e depois vamos ver como é que ele vai ser construído. Quando trabalhamos com pré-fabricação temos de ver quais são os meios que temos ao nosso dispor para construir e só depois de fazermos esse estudo é que conseguimos começar a pensar no resultado final”, diz o arquitecto. Neste projecto, começou-se por definir, juntamente com a construtora, “qual seria o módulo que permitiria uma replicação mais económica para construir as quatro creches”.

Houve várias etapas durante o processo, desde a produção e optimização da peça pré-fabricada até à logística no transporte e montagem in loco: “antes de começarmos a desenhar o edifício, começámos por desenhar vários modelos de peças até chegarmos a esta peça em forma de ‘U’, que foi repetida centenas de vezes nestes quatro edifícios para responder ao programa”, esclarece o arquitecto. As principais vantagens desta solução construtiva é a rapidez e a validação de todas as peças, feita em ambiente de fábrica sob condições altamente rigorosas: “o esquema funcional de cada um destes quatro edifícios baseia-se, no fundo, em três unidades que se conseguem perceber num corte transversal feito pelo edifício”.

Com o objectivo de tirar partido do sistema construtivo “na própria imagem do edifício”, optou-se por “deixar a estrutura à vista”. Nos dois extremos, “à esquerda e à direita” existem “dois Us sobrepostos” e é aí que se encontram “os compartimentos”. Essas são “as áreas perimetrais do edifício, é aí que se consegue ter vãos e janelas” e onde estão incluídos os compartimentos principais (os gabinetes, os berçários e as salas de actividade para crianças). Já no espaço central, “ou seja, entre esse grupo de Us sobrepostos” encontram-se as “áreas mais interiores”.

O arquitecto considera que “há uma leitura tectónica bastante fácil dos edifícios a partir da obra construída”. Ou seja, quem olha para a obra construída como ela está agora consegue facilmente perceber qual foi o processo construtivo que lhe deu origem.

E embora exista a ideia formatada de que as construções pré-fabricadas em betão são usualmente cinzentas e com pouca luz, neste projecto das quatro creches nada disso acontece. As cores são fortes e o interior recebe muita iluminação natural. O arquitecto explica que a “imagem negativa que a generalidade das pessoas tem em relação à pré-fabricação e, em particular, à pré-fabricação em betão armado” prende-se, sobretudo, por razões históricas, pois, em tempos, a União Soviética criou modelos habitacionais “massivos, feitos em grande escala” que permitiam a expansão da população.

“O que hoje está a acontecer a grande parte desses bairros é que muitos deles estão a ser revestidos. Obviamente com o intuito de também melhorar a eficiência energética daqueles edifícios”, mas, por outro lado, também com o propósito de “esconder a pré-fabricação” e “dar-lhe um ar mais humano”.

Convém referir que o projecto das quatro creches nasce no âmbito “de um concurso de concepção e construção” e beneficia de um financiamento do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Como tal, teve de obedecer a determinados parâmetros. Os critérios que determinam, em grande parte, a aprovação destes concursos de concepção e construção continuam a ser o preço mais baixo e a rapidez de execução, em detrimento dos critérios qualitativos, que por serem mais permeáveis à subjectividade tornam-se “mais difíceis de avaliar”.

A Ordem dos Arquitectos (OA) acaba por assumir uma posição “bastante reticente em relação a esses concursos de concepção e construção” devido a essa avaliação dos critérios. Já Samuel Gonçalves verifica que existe a necessidade de desenvolver projectos com soluções inovadoras, mas considera que, mesmo havendo os recursos financeiros para os concretizar, “a carga burocrática brutal que existe no nosso país acaba por limitar a execução dos programas”.

O atelier Summary já trabalhou com sistemas construtivos, utilizando o betão armado e o metal e tenciona, no futuro, experimentar outros materiais, como as estruturas de madeira: “a pré-fabricação para nós não é um fim, mas um meio”, fundamenta o arquitecto que reconhece que esse mesmo meio responde aos desafios de um futuro que se adivinha “eminentemente urbano”.

Esse futuro já está, na realidade, a acontecer. Pela primeira vez, na história da humanidade, existem mais pessoas a viver em áreas urbanas do que em áreas rurais. Estima-se que, até 2050, 4400 milhões de pessoas viverão em cidades. Samuel Gonçalves deixa o alerta: “perante este crescimento exponencial da população, que se faz sentir um pouco por todo o planeta, a construção com os métodos tradicionais, claramente, não conseguirá dar resposta em tempo útil”.

Uma expansão urbana a esta escala levantará desafios ligados não só à arquitectura, mas também criará impactos sociais, ambientais e estruturais: “o nosso esforço tem de estar, obviamente, na criação e no estudo de novas soluções que nos permitem construir com soluções cada vez mais sustentáveis e ambientalmente menos agressivas”.

É também neste contexto que o arquitecto critica o manifesto que a Trienal de Arquitectura de Oslo propôs, em 2019, quando apelou a uma arquitectura de decrescimento. “Acho caricato como é que num país como a Noruega – que tem um dos maiores fundos soberanos à escala mundial, tendo em conta a sua dimensão e o número de habitantes – vem dizer ao mundo que, se calhar, agora não devemos construir mais e devemos conter a construção nova”, diz Samuel Gonçalves.

O arquitecto fundamenta a sua posição: “não sei se temos apostado pouco em construção nova, mas temos, certamente, apostado muito na diabolização da construção nova. Como se não pudéssemos construir nada novo antes de reabilitar tudo o que está por reabilitar”.

Quando se fala de reabilitação e da forma como é que ela pode dar resposta ao crescimento populacional, Samuel Gonçalves considera que é importante reabilitar, mas a reabilitação não será suficiente para responder aos desafios que as cidades enfrentam.

Todas estas questões colocam dúvidas sobre o futuro das cidades e o futuro da arquitectura. O arquitecto reconhece que as empresas de tecnologia “já perceberam que existe um problema sério para resolver de construção e de habitação”.

No final da conversa, Samuel Gonçalves confessa que, nos últimos tempos, a área da Inteligência Artificial tem-lhe despertado muita curiosidade e não só não vê nessa crescente inovação uma ameaça ou uma eventual “desumanização da arquitectura”, como acredita nas inúmeras possibilidades para potencializar a criatividade e reformular o futuro das cidades.

Não fosse a arquitectura, afinal – segundo o raciocínio do arquitecto –, “a arte mais lenta do mundo”.


No País dos Arquitectos é um dos podcasts da Rede PÚBLICO. Produzido pela Building Pictures, criada com a missão de aproximar as pessoas da arquitectura, é um território onde as conversas de arquitectura são uma oportunidade para conhecer os arquitectos, os projectos e as histórias por detrás da arquitectura portuguesa de referência.

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