Os ziguezagues de Marcelo quando fala nos abusos sexuais na Igreja

Nesta terça-feira, o Presidente da República corrigiu-se duas vezes para tentar acalmar a chuva de críticas em relação às suas declarações sobre o número de casos de pedofilia na Igreja Católica. Não é a primeira vez. O que diz o Presidente católico quando fala da Igreja?

Foto
Marcelo Rebelo de Sousa desvalorizou os 424 casos de abusos sexuais na Igreja Católica, dizendo que o número não era elevado Nuno Ferreira Santos

Quando Marcelo Rebelo de Sousa foi eleito Presidente da República, em 2016, a sua primeira viagem ao estrangeiro teve como destino o Vaticano, para receber a bênção do Papa Francisco. Católico assumido, Marcelo Rebelo de Sousa repetiria o feito em 2021, quando foi reeleito. Antes disso, em 2019, uma viagem do Papa Francisco ao Panamá colocou o avião que transportava o Papa a sobrevoar território português.

Nesse dia, os jornais escreveram acerca da mensagem que o representante máximo da Igreja Católica enviou ao Presidente português. A ligação do chefe de Estado (de um país laico) à Igreja Católica é, evidentemente, forte. Nesta terça-feira, o Presidente viu-se obrigado a corrigir e justificar várias vezes as suas afirmações, depois de ter desvalorizado as 424 queixas recebidas pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja (CIEAMI) considerando que não era um número “particularmente elevado”. O que tem dito Marcelo, o Presidente e católico, sobre os escândalos de abusos sexuais e pedofilia na Igreja portuguesa?

No final de Julho, o jornal Observador noticiou que o actual cardeal-patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, teve conhecimento de uma denúncia de abusos sexuais de menores por parte de um sacerdote do Patriarcado e chegou mesmo a encontrar-se pessoalmente com a vítima, mas optou por não comunicar o caso às autoridades civis e por manter o padre no activo com funções de capela.

Em reacção, Marcelo afirmou que, pessoalmente, não via razões para que José Policarpo ou Manuel Clemente tivessem “querido ocultar da justiça” crimes, escusando-se a fazer “juízos específicos” sobre a alegada ocultação de uma denúncia de abusos sexuais. Pode ler mais aqui.

“Aquilo que eu posso dizer —​ e nem é como Presidente da República, é como pessoa —​ é que o juízo que formulo sobre as pessoas e não os elementos da hierarquia católica, as pessoas D. José Policarpo e D. Manuel Clemente, é o de que não vejo em nenhum deles nenhuma razão para considerar que pudessem ter querido ocultar da justiça a prática de um crime. É a opinião que eu tenho, pessoal.”

A 5 de Agosto, o Presidente da República apelou à denúncia de abusos sexuais contra crianças por padres e alertou a Igreja Católica para a inevitabilidade da “evolução no sentido de mais justiça”. As suas declarações surgiram após ter recebido a comissão independente criada para investigar estes crimes, no Palácio de Belém. Marcelo pediu à Igreja “transparência” e antecipava um “número apreciável” de casos de abusos sexuais a menores.

Nesta data, Marcelo dizia que era “chocante haver determinados tipos de crimes”, sobretudo “contra pessoas”. Quanto a números, Marcelo admitia que, “num quadro de milhões” de cidadãos, “não é impensável que possa haver um número apreciável, como houve noutros países e noutras igrejas, de portugueses que canalizem agora os seus testemunhos e venham a permitir uma dimensão numérica (...) que não é específica de casos isolados”.

“É preciso levar a investigação até ao fim, demore o tempo que demorar, independentemente do número de casos que houver e daí retirarem as ilações. Acho que a comunidade portuguesa e as várias instituições, no caso também da Igreja Católica, devem retirar as conclusões desse procedimento do passado”, diria ainda. Nessa semana, D. Manuel Clemente foi recebido em audiência privada pelo Papa Francisco, a seu pedido, no Vaticano.

No início de Agosto, a comissão (em funções desde Janeiro) já tinha remetido para o Ministério Público (MP) um total de 17 denúncias sobre abusos sexuais de menores no seio da Igreja Católica, quatro das quais já foram arquivadas. Os dados recolhidos diziam ainda que todos os padres suspeitos se mantêm no activo.

O telefonema ao bispo José Ornelas

Depois disso, já este mês, uma nova revelação abalou Belém. No dia 1 de Outubro, o Ministério Público confirmou estar a investigar o bispo José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, por alegado encobrimento de abusos sexuais, referindo ter recebido sobre esta matéria uma “participação provinda da Presidência da República”. Dois dias depois, em entrevista à TVI, José Ornelas contou que recebeu um telefonema do Presidente da República a dizer-lhe “que tinha mandado para a Procuradoria-Geral da República” esta queixa.

Foto
Bispo José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, Paulo Cunha/Lusa

Um dia depois, numa nota publicada no site, a Presidência da República confirmou que “enviou à PGR, no dia 6 de Setembro, uma denúncia envolvendo, nomeadamente, D. José Ornelas” e, depois dessa data, “foi contactada por vários órgãos de comunicação social, para confirmar tal envio, o que naturalmente confirmou”. “A 24 de Setembro, o Presidente da República [Marcelo Rebelo de Sousa] confirmou a D. José Ornelas esse envio, já depois de este ter sido contactado pela comunicação social sobre este assunto”, lia-se.

O telefonema de Marcelo ao bispo José Ornelas não foi bem visto. Ainda este domingo, Marcelo reiterou que o seu telefonema “não [terá consequências na investigação]”. “Aparentemente, a ter algumas consequências, seria aprofundar a investigação”, considerou o Presidente da República.

400 casos? “Não me parece particularmente elevado"

Um novo balanço e um novo comentário (que gerou mais dois). Durante a tarde de terça-feira, o Presidente da República comentou o mais recente balanço das denúncias validadas pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja, com um total de 424 queixas de abusos sexuais de menores na Igreja.

Horas depois, ao início da noite, Marcelo publicaria uma nota publicada no site da Presidência da República, procurando explicar as suas declarações. O Presidente da República repetiu que “este número não parece particularmente elevado face à provável triste realidade, quer em Portugal, quer pelo Mundo”. “Vários relatos falam em números muito superiores em vários países, e infelizmente terá havido também números muito superiores em Portugal”, justificava. Mas as palavras não convenceram.

Pouco depois e com a chuva de críticas às suas afirmações a aumentar, Marcelo voltou a falar para se explicar. Em declarações à RTP e à SIC, Marcelo corrigiu o que tinha dito e sublinhou que “qualquer caso” de abuso é grave.

Nas mesmas declarações, Marcelo aproveitou para dizer que cumpriu a lei ao remeter para a PGR uma denúncia de alegado encobrimento de casos de abusos numa escola em Moçambique por parte do bispo José Ornelas.

Quanto às críticas que recebeu, o Presidente garantiu que não se sentiu incomodado. “Só se sente incómodo quem é ditador”, afirmou.

Sugerir correcção
Ler 34 comentários