Annie Ernaux e o sentimento de perda
No livro La Place, Annie Ernaux revisita a morte do pai e mostra-nos como aceitar uma perda pode ser um percurso único. A literatura ajuda-nos a deslindar emoções díspares que, à partida, parecem coincidentes — como o luto e a perda de algo que idealizamos.
O único livro que li de Annie Ernaux, a quem foi atribuído o Prémio Nobel da Literatura deste ano, foi La Place (Gallimard, 1983). Encontrei a obra por acaso numa caixa de livros usados em Genebra. Decidi trazê-la para casa porque já tinha ouvido elogios à escrita depurada da autora francesa. Ernaux, disseram-me, debruça-se muitas vezes sobre o sentimento de perda. O tema despertou o meu interesse porque, na altura, estava a escrever sobre a sensação de “luto” que muitos pais sentem quando recebem o diagnóstico de deficiência dos filhos.
La Place é uma narrativa autobiográfica na qual Annie Ernaux tenta reconstruir a figura do pai. Ao contrário de Joan Didion, que em O Ano do Pensamento Mágico descreve a enorme dificuldade em aceitar a perda do marido, Ernaux expõe a morte como algo inelutável, consumado. A reescrita ficcional do pai procura corresponder ao homem original: simples, trabalhador, iletrado, desprovido de privilégios. É um tributo, é uma forma de organizar emoções, mas não é um processo de aceitação.
Já na famosa obra de Didion, acompanhamos diferentes fases do luto que procuram negar o ocorrido. “Eu estava a pensar como uma criança pequena pensa, como se meus pensamentos ou desejos tivessem o poder de reverter a narrativa, mudar o desfecho”, escreve Didion, numa tradução livre.
São formas diferentes de lidar com a perda de alguém que se ama. O luto tem caminhos diversos. Esta compreensão dá-nos bagagem emocional para tantas outras experiências, incluindo aquelas em que a vida pulsa.
Famílias atípicas — ou seja, aquelas tocadas pela deficiência ou alguma característica que fuja aos padrões sociais dominantes — relatam emoções díspares após descobrirem que têm uma criança diferente. Há quem sinta alívio por encontrar uma explicação racional para determinados comportamentos. Há quem sinta o tecto desabar. Descobrir que um filho tem uma deficiência pode implicar um profundo sentimento de perda, como se uma criança idealizada fosse extraviada no consultório médico. Alteram-se expectativas sobre o futuro, sobre um modelo imaginado de família. Nem sempre um diagnóstico chega como uma luz repentina. Por vezes, ele aproxima-se das famílias como uma nuvem branca, um sinal que permite um processo gradual de assimilação da notícia.
Perder é deixar de possuir algo. O sentimento de perda será talvez mais compreensível em deficiências adquiridas, causadas por acidentes ou doenças. Temos algo, há uma contingência e perdemos aquilo que possuíamos. Já no caso do autismo, por exemplo, a ideia de perda está associada às idealizações da família. A criança já nasceu autista, mas como este tipo de condição só é identificada mais tarde, a família dispõe de um intervalo temporal para fantasiar percursos regulares, ou até extraordinários, para os bebés. Os pais sentem que perderam algo que, na verdade, nunca tiveram.
Vários textos sobre parentalidade atípica estabelecem um paralelo entre o luto e as emoções que a família experimenta após um diagnóstico. Ainda que considere a comparação problemática — um diagnóstico de deficiência não é uma morte, nem pode jamais ser comparado ao fim de uma existência —, penso que esta analogia pode ajudar os pais a compreenderem melhor a forma como reagem à notícia. Se por um lado usar a palavra “luto” para nomear este sentimento de perda parece-me inapropriado, por outro esta designação diz muito sobre o lugar emocional que a deficiência ocupa na nossa sociedade. E, por isso, prefiro problematizar a ideia de luto neste contexto a simplesmente ignorar o termo.
No final dos anos 60, a psiquiatra suíça Elisabeth Kübler-Ross descreveu o luto como um processo dividido em cinco estágios: negação, raiva, negociação, depressão e aceitação. O percurso de cada pessoa é evidentemente único. Nem todos passarão por todas as fases e o tempo que ficarão em cada uma delas também varia. Trabalhos mais recentes sugerem que a ordem não é fixa e que, contas feitas, os percursos não se repetem.
Não acho que devamos aplicar descuidadamente o modelo proposto Kübler-Ross, mas agrada-me ver o processo de aceitação de um diagnóstico ou de uma perda como uma casa com cinco quartos comunicantes. Cada pessoa vai atravessar esta moradia de forma distinta. Algumas ficarão muito tempo paradas sob o umbral que separa dois cómodos, outras escolherão atalhos e chegarão à aceitação sem passar por determinadas divisões.
Nessa casa onde evitamos entrar, mas pela qual todos passamos em algum momento, é muito difícil nomear sentimentos. E é, por isso, um bem inestimável poder contar com a literatura para nos guiar, ampliando a janela que temos para o domínio do humano, e deslindando emoções díspares que, à partida, podem parecer coincidentes.