O senhor Castelão já fez 60 vindimas e não vai entregar as chaves da adega
António Saramago trabalhou durante 47 anos na José Maria da Fonseca, deu fama aos Tapada de Coelheiros, criou uma marca homónima na Península de Setúbal e está, aos 74 anos, a fazer vinhos no Brasil. “Reforma? Não conheço”.
Comecemos pelo título. Estávamos a assistir à Vinalda Wine Experience – a propósito dos 75 anos de vida da distribuidora – quando, na apresentação do seu tinto AS 2015, António Saramago revela que em Março celebrou os 60 anos de carreira, brincando com o facto de ser “o enólogo mais antigo em funções em Portugal”. Não seria necessário ser-se um ás do jornalismo para imaginar o título certo, mas, decorria pausadamente a conversa com António Saramago num intervalo da programação do evento quando passa por nós João Roseira, esse iconoclasta da Quinta do Infantado e do Douro e, do nada, atira-nos assim: “para quando a criação do título senhor Castelão para o António Saramago?”. Faz a pergunta, vira-nos as costas e segue caminho com uma garrafa dos seus Portos Vintage na mão, deixando-nos com aquela sensação de ‘filha da mãe, tem toda a razão’.
De facto, e apesar de haver muito poucos enólogos portugueses com cognomes de castas, sempre temos o senhor Alvarinho (Anselmo Mendes) e o senhor Baga (Luís Pato), de maneira que entregar o título de senhor Castelão a António Saramago é correcto e é justo.
O enólogo da Península de Setúbal começou a trabalhar na José Maria da Fonseca (JMF) aos 14 anos, na companhia do pai, que era adegueiro. Fez um pouco de tudo na empresa, trabalhou com Manuel Vieira (pai), António Avillez e várias personalidades da família Soares Franco. De caminho, fez formações de enologia em Bordéus, com essa figura de referência que foi Émile Peynaud.
Tendo em conta que o vinho que deu fama à JMF durante muitos anos foi o Periquita, António Saramago não só conheceu por dentro e por fora a casta Castelão, como ficou a saber onde é que ela atingia níveis de excelência. “A capacidade de produção própria da JMF para o Periquita era ínfima, pelo que havia que comprar vinhos de Castelão na região. Com o tempo acabei por saber onde estavam as melhores vinhas”. Onde? “Nas zonas das areias da Península de Setúbal, naturalmente. E o curioso é que, ainda hoje, para os vinhos da sua marca — AS —, o enólogo socorre-se dos mesmos micro-terroir, um deles do seu popular amigo Octávio Machado, colega de carteira na escola.
Pergunta-se ao enólogo por que razão há, hoje, vários tintos de Castelão criados à laia de Syrah ou Touriga Nacional (extraídos) e António responde que isso se deve a “uma mistura de modas e preguiça”. E continua. “Fazer um bom Castelão dá trabalho e não é garantido todos os anos. A casta tem de estar instalada nos solos certos, tem de ser controlada na sua produção, não ter rega e, muito importante, a fermentação deve ocorrer em lagar aberto e com engaço (isso é determinante). De contrário sai-nos um vinho que é tudo menos um Castelão clássico”. Não admira, pois, que Saramago faça elogios aos tintos de Pegos Claros, fermentados em grandes lagares abertos de cimento. “Aliás, as uvas que usamos nos nossos vinhos são de vinhas próximas de Pegos Claros, em solos de areias e rodeadas de eucaliptos”.
O enólogo é fã de Castelão por duas razões: “primeiro porque dá vinhos que não são imitáveis e, segundo, porque dá uma identidade vincada à região. Não sou contra a existência estrangeiras ou de outras regiões nacionais, até porque as uso e até fui muito feliz com elas, mas se eu vou a Bordéus para beber Cabernet Sauvignon e à Borgonha para beber Pinot Noir, espero que uma pessoa culta venha à Península de Setúbal para beber Castelão ou moscatéis. É assim que eu vejo as coisas”.
A felicidade referida acima tem a ver com a passagem pela Herdade de Coelheiros (Alentejo), onde Saramago meteu no radar dos enófilos, ao longo de 25 anos, vinhos de grande categoria feitos à base de Chardonnay e Cabernet Sauvignon. Seguiram-se aventuras na cooperativa da Granja Amareleja ou na Adega Cooperativa do Redondo, onde criou a marca Anta da Serra.
“Naquele tempo havia tanto dinheiro que resolvi comprar barricas de luxo para fermentar vinhos a imitar o Pingus feito pelo Peter Sisseck. Retirava os tampos, fermentava os bagos, retirava o vinho, fechava os cascos e metia o vinho de novo a estagiar nos mesmos cascos novos. Mais tarde, para um vinho já meu — o Dúvida — comecei a usar 200 por cento de madeira nova por cada colheita”.
Não é isso um exagero de madeira? “Não necessariamente. O que é preciso é escolher muito bem as uvas (com engaço) e as barricas. Eu sei que agora é moda falar contra a madeira, mas eu entendo que um bom vinho precisa sempre de uma boa cama para descansar. Não vive só das uvas ou dos controlos de fermentação, vive no estágio em madeira, vive da boa cama”.
Neste momento, António Saramago faz, com os filhos, os vinhos com o seu nome (no total serão 150 mil garrafas por ano) e os vinhos brasileiros Villaggio Grando, em Santa Catarina. O que faz alguém, aos 74 anos, depois de uma carreira reconhecida no sector, continuar a fazer vinho? “A vontade de aprender porque cada vindima tem a sua história.” O que é necessário para se ser um bom enólogo? “Ter experiência e golpe de asa”. O que é isso do golpe de asa? “É ter rasgo e ter capacidade de perceber como se resolvem problemas que surgem todos os dias e que não aparecem nos manuais de enologia.” Quando chegará a reforma? “Reforma? Não conheço.”
Nome António Saramago AS 2015
Produtor António Saramago
Castas Castelão de vinhas velhas (80 por cento) com Touriga Nacional, Alicante Bouschet e Cabernet Sauvignon.
Região Península de Setúbal
Grau alcoólico 14,4 por cento
Preço (euros) 55
Pontuação 95
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova O tinto não é 100 por cento Castelão porque António Saramago entendeu que, em 2015, percentagens pequenas de outras castas dariam estrutura e complexidade ao vinho. É um vinho profundo, com as clássicas notas fumadas, vegetais e de casca de ameixa. Na boca é um vinho sedoso, guloso, mas sempre fresco. Um tinto que encantará em qualquer parte do mundo.