Por que não “Pessoas Primeiro”?
Sem entrar na discussão sobre as medidas anunciadas e o seu putativo impacto, a minha atenção fixou-se no dispositivo de comunicação política e, em particular, na ideia de “Famílias Primeiro”.
O anúncio das medidas anti-inflação, pelo primeiro-ministro, a 5 de setembro, conferiu ampla projeção à expressão “Famílias Primeiro”. Nas primeiras páginas dos diários generalistas de âmbito nacional do dia seguinte são publicadas fotografias do acontecimento, ainda que com enquadramentos distintos. No PÚBLICO, a fotografia, com o chefe de Governo em plano principal, ocupa a quase totalidade da primeira página, notando-se um efeito luminoso sobre a parte do púlpito em que se exibe o slogan. O mesmo protagonismo ocorre no Jornal de Notícias, mas a imagem mostra apenas António Costa, sem frase. No Correio da Manhã, a mensagem política é essencialmente traduzida nos títulos. O Diário de Notícias e o i optaram por não colocar na primeira página qualquer fotografia da conferência de imprensa.
No dia 6 de setembro, a expressão deu lugar ao conceito o “Programa Famílias Primeiro”, explicado em detalhe, em conferência de imprensa, por quatro ministros (Finanças, Ambiente e Ação Climática, Infraestruturas e Habitação, Trabalho, Solidariedade e Segurança Social). Em cenário de fundo surgem seis ícones, dois dos quais simbolizando figuras humanas, correspondentes a “Crianças e Jovens” e a “Pensionistas”. Estes últimos, por seu turno, são representados por uma eloquente bengala… Os termos “família” e “apoio às famílias” naturalizaram-se nos dias seguintes no espaço público.
Sem entrar na discussão sobre as medidas anunciadas e o seu putativo impacto, a minha atenção fixou-se no dispositivo de comunicação política e, em particular, na ideia de “Famílias Primeiro”. Afinal, parte das medidas destina-se a indivíduos, como a compensação de rendimentos por um inédito pagamento extraordinário de 125 euros a cada cidadão com rendimento até 2700 euros mensais. Há também ações dirigidas a “descendentes”, assim designados, nomeadamente, o pagamento extraordinário de 50 euros por cada um, criança ou jovem até 24 anos, a cargo.
Porém, há de facto uma concretização do conceito de “família” (ver o Portal do Governo), mobilizado para ilustrar o impacto de algumas das medidas. Assim, “por exemplo”, um “casal com dois filhos” receberá em outubro um pagamento extraordinário de 350 euros ou beneficiará de uma poupança de 10% na fatura do gás caso mude para o mercado regulado.
Esta comunicação do primeiro-ministro parece assentar num arquétipo de “família”. Ora, se houve instituição social que se reconfigurou profundamente nas últimas décadas foi precisamente esta. A Constituição consagra a igualdade a diversas entidades familiares e juridicamente tende-se para o reconhecimento de novos modelos familiares.
Ocorreu-me também que é bastante significativa em Portugal a percentagem da população que vive sozinha ou que não se junta a outros ocupantes de um alojamento. Nas análises estatísticas são as “famílias unipessoais”. Procurando informação oficial, segundo os Censos de 2021 e citando a Pordata, em 2021 projetava-se a existência de cerca 1.027.924 “famílias clássicas unipessoais” em Portugal, ou cerca de 25% do total de famílias. Em 2011, uma parcela de 47% deste grupo tinha mais de 65 anos.
Facto é que vivemos um momento de intenso e polarizado debate público e político sobre modelos familiares. Para muitos, o Estado não deve imiscuir-se em certas dimensões relacionadas com conceções valorativas e de vida, que entendem caber em exclusivo à educação no seio familiar. Sendo complexo traçar fronteiras entre esfera familiar e escolar, têm existido acusações de que os poderes públicos contribuem para a degradação da família enquanto instituição social.
A opção que funda a estratégia de comunicação política do Governo, convocando um certo modelo de família mas dirigindo na prática as medidas aos indivíduos, parece “piscar o olho” a faixas mais conservadoras da sociedade, no quadro, não se ignora, de deslocação da representação política institucional à direita. Interrogo-me se o conceito de “Famílias Primeiro”, em primeiro plano na cenografia e performance de António Costa, englobará o quarto da população portuguesa que, na prática, vive ou está sozinha. Faz sentido continuar a representar o “pensionista” com uma bengala? Se as “famílias” estão primeiro, o que fica em segundo lugar nesta priorização política? E a família-padrão em que se funda a mensagem, “casal com dois filhos”, não reifica uma ideia de família tradicional que a própria evolução constitucional, legal e social transcende?
Tenho para mim que teria sido decisivamente mais inclusivo apostar no slogan “Pessoas Primeiro”.