A mudança do paradigma no trabalho médico e a falta de médicos de família
Será preferível ter doentes sem médico de família, ou ter médicos não especialistas, “indiferenciados”, enquadrados no SNS, com possibilidade de progredirem para a especialização em Medicina Geral e Familiar? Sou a favor desta opção.
O paradigma do trabalho médico mudou muito nos últimos anos, acompanhando de certo modo a tendência quiet quitting: “o trabalho é uma parte da vida e o tempo livre é para a vida pessoal e familiar”.
A generalidade dos médicos mais jovens, opta por trabalhar apenas no sector público ou no privado, ao contrário das anteriores gerações que trabalhavam doze ou mais horas diariamente, em múltiplos locais, para ganharem mais, mas também para adquirirem experiência. Ora, optando por trabalhar menos horas e fazê-lo num só local, haverá naturalmente uma redução dos rendimentos e do número de profissionais disponíveis, e neste caso, o mais frágil é atualmente, o Serviço Nacional de Saúde (SNS)
Sendo a profissão médica diferente de outras, mesmo da medicina dentária ou da veterinária, - além da responsabilidade de tratar pessoas, o número de profissionais que se formam no país é regulado pelo estado (numerus clausus fixado pelas escolas públicas e impedimento da abertura de escolas médicas privadas), estágio no final do curso e formação pós-graduada assegurados e pagos pelo estado e pleno emprego no Estado -, é óbvio que a atual situação do SNS nos interpela. E, como diz o ditado “não podemos querer sol na eira e chuva no nabal”, muitas vezes é necessário fazer escolhas que não agradarão a todos.
Vem isto a propósito do milhão e quatrocentos mil utentes que não têm médico de família - calcula-se cerca de 900 médicos em falta -, o que é inaceitável no SNS. Para obviar a situação, a Lei do OE de 2022 prevê que alguns Centros de Saúde (CS), a título excecional, poderão contratar a termo incerto, “médicos habilitados ao exercício autónomo da profissão”.
Sendo exigível excelência e qualidade em medicina não parece, no entanto, lícito afirmar, como algumas estruturas médicas relevantes o têm feito, que médicos com um ano profissionalizante acrescido de um ano de estágio, enquadrados em CS, podendo ser tutelados por especialistas de Medicina Geral e Familiar (MGF), não estarão aptos a colmatar faltas de médicos de família, ainda que, como diz a lei, a título excecional.
É claro que concomitantemente, deverá ser exigido - porque tal não está legislado -, a possibilidade para esses colegas sob a tutela de especialistas de MGF se especializarem, podendo ser-lhes concedidas, para tal, algumas facilidades, por exemplo, a prioridade na entrada da especialidade em concursos posteriores, o alargamento do período para a especialização ou a atribuição de pontuação para que, ao fim de alguns anos - a definir pelo colégio da especialidade -, se possam submeter a exame para a obtenção da especialidade em MGF.
Esta solução, a negociar com o Governo, permitiria transitoriamente ultrapassar a dramática e iníqua situação atual de até no mesmo agregado familiar, poder haver doentes sem médico de família ao lado de outros com especialistas de MGF.
A curto prazo, haverá centenas de médicos que optam por não se especializar - um novo paradigma na profissão - mas que muito provavelmente vão continuar a trabalhar como médicos “indiferenciados”.
Alguns deles possivelmente emigrarão, mas a grande maioria integrará equipes privadas, “fornecedoras de tarefeiros”, exercendo funções como médico de família, sem dependência hierárquica, o que é uma má solução quer para os doentes quer para esses mesmos médicos.
Se considerarmos que após terminado o curso e o estágio, os médicos deverão obter uma especialização, integrá-los nos CS, enquadrados por especialistas e estimulando a sua especialização, será a melhor forma de valorizar a MGF.
A Ordem dos Médicos vai ser rapidamente confrontada com esta nova classe de jovens “indiferenciados”. Como fará a sua certificação? e terá possibilidade de delimitar a sua atividade clínica?
A outra alternativa sugerida também na referida lei do OE, e que tem sido desvalorizada é “contratar médicos estrangeiros”.
A ideia não é nova e até já foi adotada no país. Há poucos anos, foram contratados colegas latino-americanos “indiferenciados” para trabalharem em Portugal (aos cubanos era-lhes retido pelo respetivo governo, dois terços do ordenado, não estavam autorizados a viajar, a reagrupar a família, etc.).
Opus-me de várias formas a esta solução (fui o primeiro diretor de faculdade a ser contactado para a implementar, e só avançou quando acabei o mandato). Na altura a total ausência de oposição de organizações académicas e médicas com responsabilidade, - mesmo estando em causa direitos humanos como no caso dos colegas cubanos -, permitiu que centenas de médicos fossem contratados durante alguns anos, apesar de nem sequer dominarem a nossa língua.
Temo que o governo, num momento de crise como a atual, venha a autorizar estrangeiros exercerem medicina em Portugal, à semelhança do que recentemente sucedeu para os refugiados da Ucrânia.
É claro, que a resolução definitiva do problema passará sobretudo por melhorar os CS com novos equipamentos, possibilitando aí efetuar exames complementares de diagnóstico, e assegurar a colaboração in loco de outras especialidades (o que já aconteceu num passado muito longínquo), por exemplo na área da Pediatria – são os CS que acompanham os recém nascidos, logo após a alta da maternidade. A implementação de novas Unidades de Saúde Familiar (USF), preferencialmente do modelo B, com remunerações mais atrativas e maior número de utentes por médico (inspiradas no antigo Centro de Saúde S. João da FMUP) e o trabalho remunerado por objetivos nas Unidade clássicas, são exemplos de alterações estruturais que poderão atrair mais especialistas de MGF para o SNS, mas que naturalmente, necessitam de algum tempo para serem implementadas. E nas escolas médicas os curricula terão igualmente que mudar, do ensino centrado no hospital passar a valorizar mais a MGF.
No imediato, contudo, coloca-se a questão: será preferível ter doentes sem médico de família, ou ter médicos não especialistas, “indiferenciados”, enquadrados no SNS, com possibilidade de progredirem para a especialização em MGF? Ou ter médicos “indiferenciados” estrangeiros, certamente os que no país de origem não encontraram trabalho? Ou em alternativa, contratar médicos de família à tarefa que por certo não serão especialistas, e hierarquicamente desvinculados do SNS?
Advogaria de imediato a implementação da primeira das opções elencadas.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico