A queda de Marta Temido e a morte de uma mulher grávida
Foi amplamente aplaudida durante a pandemia e chegou a ser considerada uma potencial sucessora de António Costa. A sua missão, numa pasta como a da Saúde, nunca seria fácil, mas não se adivinhava que tivesse de enfrentar uma crise sanitária sem precedentes. Justiça lhe seja feita: Marta Temido esteve à altura dessas dificuldades.
Revelou um misto de força e de fragilidade que a caracterizaram como humana, numa altura em que humanidade era preciso. A sua popularidade atingiu um pico — linguagem de pandemia — que vimos ser prontamente capitalizado pelo PS: o momento em que no congresso do partido lhe foi oferecido o cartão de militante.
Depois da tempestade costuma vir a bonança, mas é um clássico que quem tem habilidade para brilhar durante a tempestade não tem talento para a bonança. É certo que, quando falamos de SNS, a bonança tem um bocado de tormenta. E assim foi. A pasta da saúde, no regresso à normalidade, revelou-se uma verdadeira granada.
Marta Temido foi vista como demasiadamente esquerdista pela direita em razão do seu posicionamento face à articulação dos privados com o SNS. Pela oposição à esquerda, foi vista como não tendo força para impor a sua vontade às limitações orçamentais de António Costa e sobretudo à visão ideológica de um PS liberal.
Mas, num governo de maioria absoluta, não foi certamente a direita e também não foi a oposição à esquerda que a fizeram cair.
Morreu uma grávida.
Foi uma morte que sucedeu à ocorrência de muitas falhas do sistema. É evidente que o SNS necessita de reformas profundas e que a situação, como está, é insustentável e perigosa. Mas será que esta morte se deveu a uma falha do sistema e, por isso, a uma falha atribuível a Marta Temido?
O Hospital de Santa Maria não tinha vagas no serviço de cuidados intensivos de neonatologia e essa foi a razão para a transferência da mulher grávida. Parecem ter sido seguidos todos os procedimentos recomendados para uma transferência nesses casos. Uma falta de vaga não é o mesmo que falta de pessoal. Houve um problema, e que terminou numa tragédia, mas ele não parece resultar de uma falha do SNS enquanto sistema.
Quais as razões para a demissão? Algumas possibilidades podem ser equacionadas. A primeira é que Marta Temido estava isolada e sem o suficiente apoio do Governo, atendendo à gravidade da situação do SNS.
É certo que Fernando Medina já tinha afirmado que o problema do SNS não era falta de orçamento. Independentemente da apreciação que se faça dessa declaração, ela continha uma responsabilização da própria ex-ministra da Saúde. Também neste final ninguém terá sentido a mão do primeiro-ministro a segurar Marta Temido. Pelo contrário, considerou que teve de aceitar a sua demissão. Está aqui implícito um juízo de avaliação de que a decisão de Marta Temido não foi exagerada ou desproporcional.
Também podemos admitir a possibilidade de Marta Temido — submetida a uma pressão enorme e perante uma morte pela qual, justa ou injustamente, seria sempre apontada — tenha decidido meter um ponto final. É humano; aquela característica que já tinha demonstrado ter. Além de humano, pode também ser inteligente. Apresentou demissão na sequência de um caso, relativamente ao qual não tem “culpa”, cumprindo aquela máxima com provas dadas: quando sucede uma desgraça, a culpa não pode morrer solteira. A leitura da sua demissão abona a seu favor.
No momento da sua saída, e muito à portuguesa, muitas vozes se levantam em sua defesa e em elogio ao seu trabalho. Os políticos têm mais encanto na hora da despedida. Sucede que fica a dúvida relativamente à competência de Marta Temido e à sua capacidade e determinação para levar avante as políticas em que acreditava e até na bondade dessas políticas. Não é positivo. Foi ministra demasiado tempo para que a dúvida subsista.
Fica ainda outra dúvida: será que esta queda é definitiva? Ou será que, como na infeliz queda que deu à porta do ministério e a cujas imagens lamentavelmente assistimos, também desta se levantará?
Não seria surpreendente. Marta Temido caiu, mas não caiu em desgraça.
Esta foi uma leitura política do caso Marta Temido. O tratamento jornalístico que deverá ser dado a estes factos é outra coisa: é obrigatório que, nesse âmbito, se investigue a morte da mulher grávida. Estranha-se que não exista uma maior curiosidade relativamente à sua história; a exigência de uma investigação jornalística. Desconhecemos, no momento em que escrevo este artigo, o nome da mulher que morreu e quase tudo sobre o caso. Uma indiana que não falava inglês nem português e a quem os médicos não entendiam. Como se tentou resolver este problema? Existe um protocolo para estas situações? Houve tempo para o aplicar?
Que entre em cena o jornalismo. Ele faz muita falta.