Dentistas, médicos invisíveis do SNS: 80% trabalham a recibos verdes

São maioritariamente jovens, não têm direito a férias ou a subsídios e podem chegar ao fim do mês com pouco mais de 700 euros. O número de gabinetes de saúde oral mais do que duplicou desde 2018, mas a demora na criação de uma carreira faz com que muitos médicos dentistas abandonem o SNS.

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Precariedade afecta dentistas no SNS e muitos querem sair para o sector privado GABRIELA PEDRO

A esmagadora maioria dos médicos dentistas do Serviço Nacional de Saúde (SNS) que trabalham nos centros de saúde, cerca de 80%, trabalha a recibos verdes e apenas 20% estão já integrados nos quadros do Estado como técnicos superiores do regime geral, números fornecidos ao PÚBLICO pela Associação Portuguesa dos Médicos Dentistas do Serviço Público (Apomed-SP) — que há vários anos expõe junto do Ministério da Saúde e da Direcção-Geral da Saúde as condições de trabalho a que estes profissionais estão sujeitos — e pela Ordem dos Médicos Dentistas. Em questão estão mais de 120 médicos em situações “precárias”, “alguns há mais de 30 anos”, como refere o bastonário, Miguel Pavão.

O PÚBLICO tentou perceber, junto do Ministério da Saúde, se estes números correspondem à realidade, mas não recebeu uma resposta concreta. Sobre os profissionais que asseguram os cuidados de saúde oral no SNS o ministério diz apenas que eram, até Julho, 311, entre “médicos dentistas, médicos especialistas em estomatologia, e em cirurgia maxilo-facial, higienistas orais e técnicos de prótese dentária”.

A precariedade é ainda mais evidente, se olharmos apenas para os dados dos dentistas que exercem há menos de nove anos, ou seja, os médicos mais jovens. Segundo um inquérito deste ano feito pela Ordem dos Médicos Dentistas, 89,3% dos profissionais do sector público encontram-se contratados a recibos verdes, e quase metade (48,9%) está contratada através de empresas intermediárias. “Apenas 10,6% dos profissionais estão integrados numa carreira: técnico superior do regime geral, não específica para a execução de actos médicos”, lê-se no relatório.

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Consultório dentário no centro de saúde de Águas Santas, na Maia PAULO PIMENTA

Governo quer um consultório por concelho

De acordo com o plano traçado entre 2016 e 2018, no ambicioso projecto Saúde Oral para Todos, Portugal teria, em 2020, uma maior cobertura dos cuidados de saúde oral no SNS. Isto implicaria não só mais consultórios em todo o território continental, mas também mais dentistas para os preencher.

A meta era abrir pelo menos 278 consultórios – um por cada autarquia –, abrangendo a totalidade da população do ponto de vista geográfico. E, apesar de o número total de consultórios ter mais do que duplicado desde 2018 (altura em que existiam 63), quase nenhuma das projecções se verifica agora, em 2022.

“Com uma pandemia pelo meio, pouco ou nada mudou. O Governo de António Costa introduziu esta questão e usou desde o início a saúde oral como bandeira eleitoral, mas depois a priorização ficou muito arrefecida. Há muitas lacunas de base e uma delas é a carreira. Enquanto ela não existir, há um grande problema: a fraca atractividade dos médicos dentistas para o SNS”, diz o bastonário, Miguel Pavão. Com a saída do ministro Adalberto Campos Fernandes e do secretário de Estado Fernando Araújo do Ministério da Saúde, e a entrada de Marta Temido, “a situação arrefeceu”.

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De acordo com o ministério, Portugal tem agora 140 gabinetes de medicina dentária distribuídos por 49 agrupamentos de centros de saúde (ACES) e unidades locais de saúde (ULS), que “garantem a cobertura da população residente em mais de 80% dos concelhos”. A tutela também diz que, no final de 2021, “mais de 90% dos ACES e ULS estavam dotados de gabinete de medicina dentária, sendo a cobertura total nas regiões norte, Lisboa e Vale do Tejo e Algarve”.

O bastonário afirma que em algumas regiões do país, como na ARS-Norte, tem existido “um esforço para colmatar lacunas”, mas tal não acontece em todo o país. “A ARS-Algarve só tem 14 gabinetes de medicina dentária abertos e nos primeiros seis meses de 2021 houve uma troca de quase 12 médicos dentistas. Tanta rotatividade não ajuda a um aspecto fundamental que é criar uma relação duradoura com os doentes”, observa.

Há vários anos que a ordem apela à criação de uma carreira para os dentistas no SNS, lembrando que o processo já foi aprovado pelo Ministério da Saúde, mas que aguarda há quase um ano pelas Finanças. Miguel Pavão diz ainda que, para resolver os problemas “estruturais” da medicina dentária no SNS, será necessária uma “visão a longo prazo” e não “medidas soltas que criam uma manta de retalhos”.

Segundo explica ao PÚBLICO o presidente da Apomed, Manuel Nunes, a falta de uma carreira para estes profissionais faz com que todos, mesmo os que já estão integrados nos quadros dos serviços, estejam “a trabalhar ilegalmente no SNS”. “Estamos integrados na carreira geral de técnicos superiores ou como prestadores de serviços, através de empresas de trabalho temporário. É uma carreira meramente administrativa que nada tem que ver com o nosso trabalho”, diz o médico dentista que há mais tempo trabalha no SNS, em Castelo Branco.

José Frias Bulhosa, também dentista do SNS e dirigente da Apomed​, acrescenta que os médicos dentistas que não estão ainda integrados nos quadros do Estado são “maioritariamente jovens” que “vivem sempre no risco de não verem os seus contratos renovados mesmo que façam um óptimo trabalho”. “Com tudo isto posto em cima da mesa, resta pouca atractividade para querer trabalhar no SNS enquanto médico dentista. O atractivo é ser louco.”

Há quatro décadas, a medicina dentária ficou de fora do SNS, mas nos últimos anos foram dados alguns passos, entre os quais o cheque-dentista, para melhorar o acesso a cuidados de saúde oral nos centros de saúde. Entre 2016 e 2021 foram feitas 345 mil consultas dentárias no SNS, um valor que fica muito atrás das 451 mil que estavam projectadas só para 2021. O ministério “reconhece a mais-valia destes profissionais” e diz prever a sua integração no SNS. E lembra que o Governo traçou como objectivo no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) a criação de mais 130 gabinetes de saúde oral nos centros de saúde até 2026.

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Trabalho “gratificante"

“Entre, entre, dona Marta”, diz uma voz de dentro do consultório. Esta utente já conhece os cantos à casa. E isso nota-se pelo à-vontade com que chega ao pequeno consultório dentário, cumprimenta a médica e a assistente que a esperam com um sorriso e se senta na cadeira já preparada para a receber.

Pouco passa das 9h e Marta já é a terceira utente a passar as portas do consultório de Saúde Oral do Centro de Saúde de Águas Santas, na Maia, um dos 140 que existem no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e que trabalham nos centros de saúde. Os primeiros minutos da consulta são passados a falar das dores de dentes, do trabalho e das férias que estão a chegar. Há mais de um ano que Marta Cruz é tratada por Bárbara Barbosa, médica dentista, e Andreia Pinto, assistente de medicina oral. Apesar de ser beneficiária da ADSE e de “ter possibilidade” de ir a um consultório privado, “não troca por nada” o que encontrou neste centro de saúde.

Consultório de Saúde Oral do Centro de Saúde de Águas Santas, na Maia PAULO PIMENTA
Bárbara Barbosa, médica dentista, e Andreia Pinto, assistente de medicina oral PAULO PIMENTA
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Consultório de Saúde Oral do Centro de Saúde de Águas Santas, na Maia PAULO PIMENTA

“Isto era necessário em todo o lado. Há tantas pessoas que não têm dinheiro para ir ao dentista. Uma limpeza é muito cara, e os tratamentos nem se fala”, diz Marta Cruz, já despachada da consulta e com novo encontro marcado para dali a um mês.

Bárbara Barbosa, de 25 anos, teve uma proposta para trabalhar neste centro de saúde depois de fazer um estágio no sector privado durante um ano. “Não me sentia realizada no privado, porque é um ambiente completamente diferente. Aqui as pessoas agradecem muito e nós fazemos tudo o que podemos por elas. São pessoas que nunca vieram ao dentista e é muito gratificante ver uma evolução.”

A jovem faz parte do grupo de 145 dentistas que trabalham a recibos verdes nos centros de saúde — 80% estão nesta situação, segundo as associações representativas destes profissionais. Foi contratada directamente pela Administração Regional de Saúde (ARS) Norte há mais de um ano, mas ainda não tem um contrato. Sobre as condições de trabalho é parca nas respostas: “Infelizmente, estamos a recibos verdes, mas no futuro nunca se sabe. Neste momento é aqui que eu me sinto realizada e é aqui que eu quero estar.”

Mas se há quem não se queira demorar muito no assunto, há também quem não se canse de falar das condições oferecidas aos médicos dentistas, principalmente aos que acabam de entrar na profissão. Até porque foram a “falta de direitos e o excesso de deveres” que fizeram com que Margarida Borges, de 26 anos, saísse de um posto de trabalho em tudo semelhante ao de Bárbara Barbosa e migrasse para o sector privado.

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Margarida Borges deixou de trabalhar no SNS no fim de 2021 Nelson Garrido

Pouco depois de terminar o curso, Margarida já tinha recebido uma proposta para exercer numa clínica, mas trabalhar no SNS era algo muito “ansiado”. “Sabia que no SNS havia um grande volume de pacientes. Fiquei muito expectante quando surgiu essa oportunidade. Abracei as coisas com muita intensidade”, conta. “Para trabalhar no centro de saúde, acho que o médico dentista tem de ter um perfil específico. Atendemos pessoas com muitas necessidades e carências económicas, pessoas com 40 e 50 anos que nunca tiveram uma consulta. E isso é muito desafiante, há um ritmo e estilo de trabalho um bocadinho diferente do sector privado.”

Mas ao fim de dois anos, não se sentia recompensada, estava “estagnada”.

“Primeiro, tinha um contrato precário, por recibos verdes. Era paga à hora, sem qualquer tipo de garantia de um futuro. Sabia que durante o tempo do contrato estava segura, mas não sabia o que aconteceria depois disso. Não tinha perspectiva de crescimento de carreira”, descreve. Também não tinha subsídios de Natal e de férias: se não trabalhasse, não recebia. “Havia meses, como em Dezembro, em que o meu ordenado era muito mais baixo, porque existiam muitos feriados. Por mais que quisesse trabalhar e agendar mais consultas durante esse mês, não podia porque o centro de saúde estava fechado.”

Apesar destas condições, Margarida, que foi contratada directamente pela Administração Regional de Saúde (ARS) do Norte, diz que há médicos dentistas a serem recrutados por empresas de contratação temporária em situações (ainda) mais precárias. O bastonário da Ordem dos Dentistas corrobora a afirmação: “Um médico dentista contratado por uma empresa destas recebe cerca de cinco euros à hora. Qual é o médico que está disponível para trabalhar nestas condições, quando não tem direito a férias e não cria nenhum vínculo com o centro de saúde? É um trabalho precário”, critica Miguel Pavão.

José Frias Vilaça, da Associação Portuguesa dos Médicos Dentistas do Serviço Público (Apomed-SP), denuncia dezenas de situações destas no Alentejo, em Lisboa e Vale do Tejo e no centro do país. “Nestes casos, além das disparidades entre contratos de trabalhadores que fazem rigorosamente a mesma coisa, ainda temos um factor mais estranho: estas empresas servem apenas de intermediárias e ganham mais do que o médico dentista. Se o Estado não permite às empresas particulares terem situações de falsos recibos verdes, porque é que promove isto nos seus serviços?”

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Mais consultas em menos tempo

No centro de saúde onde Margarida Borges trabalhava havia uma “enorme pressão” para atender um elevado número de utentes por dia. “O tempo de consulta era muito apertado e muitas vezes nem era suficiente para o tratamento de que precisávamos. Semanalmente era exigido que atingíssemos certos números. Muitas vezes as pessoas faltavam a algumas consultas e a responsabilidade era posta do nosso lado.” Além disso, a burocracia para realizar uma simples consulta era muita, o que criava números nas listas de espera que “nem sempre correspondiam à realidade”.

Para um utente ter uma consulta dentária no SNS não pode simplesmente dirigir-se ao consultório. Terá primeiro de obter uma referenciação pelo médico de família, ou médico assistente, para que o dentista tenha acesso a todas as informações clínicas. No caso de o dentista detectar um problema durante a consulta (como um cancro oral, por exemplo) terá de passar a informação ao médico de família e só através deste é que o utente poderá ser referenciado para um hospital.

Estes processos retiravam autonomia ao dentista e sobrecarregavam ainda mais os médicos de família, lamenta Margarida Borges, que acrescenta que há utentes com doenças graves que não podem esperar semanas por essa nova referenciação.

“Não somos trabalhadores do Estado”

A história de Ana Catarina Gomes conta-se quase nas mesmas palavras que a de Margarida. Já tinha um posto de trabalho garantido na clínica do pai, mas falaram-lhe de uma oportunidade num centro de saúde e a médica dentista não hesitou em aceitar.

“Entrei para substituir uma médica que estava de licença de maternidade, mas acabei por ficar mais tempo, porque ela foi transferida para outro centro de saúde”, conta a jovem ao PÚBLICO, no seu último dia de trabalho no SNS, em Julho. “A parte monetária não nos alicia e não há possibilidade prevista para a criação de uma carreira. Isso dava-nos estabilidade. Tenho 27 anos, não posso estagnar agora, quero evoluir, quero melhorar, e o SNS não o permitia. Eu tenho uma especialidade e não estou a fazer uso dela. Não fazia sentido continuar cá, apesar de adorar o trabalho que fazia.”

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Ana Catarina Gomes deixou e trabalhar no SNS em Julho deste ano NELSON GARRIDO

Num mês “normal”, Ana Catarina Gomes e Margarida Borges recebiam entre 1300 e 1400 euros brutos. A esse valor têm de tirar os descontos para a Segurança Social, o IRS, o montante para o seguro de responsabilidade civil e de acidentes de trabalho, que é pago de meio em meio ano, e a quota trimestral da Ordem dos Dentistas. “Ficava praticamente com metade, mais ou menos 700 euros, menos do que o salário mínimo. Além disso, eu e outros colegas na minha situação éramos falsos recibos verdes”, refere Ana Catarina.

As duas jovens médicas trabalhavam a “recibos verdes”, sem contrato de trabalho, mas exerciam a sua actividade profissional respondendo perante uma hierarquia, com a obrigatoriedade de cumprir um horário e ter um posto de trabalho fixo. “Se pudesse escolher, queria ficar no SNS. Ainda estou na fase da minha vida em que acho que vou mudar o mundo”, confessa Ana Catarina. Para alguns utentes, ir ao dentista era um luxo. Notava que fazia uma grande diferença na vida das pessoas, mesmo estando num gabinete pequeno a fazer os tratamentos mais básicos. Para mim, a maior vantagem de trabalhar no SNS era poder ajudar e educar tanta gente.”

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Dez dias de “ausências”

Voltemos ao consultório de Bárbara Barbosa. Está debruçada sobre uma utente que diz, várias vezes, ter melhorado “muito” desde a última vez que cá veio.

Neste centro de saúde, a lista de espera para uma consulta raramente ultrapassa um mês e meio, um mês, se as duas profissionais conseguirem “acelerar os processos”. “O problema resolvia-se, se existissem mais dentistas nestes agrupamento de centros de saúde”, diz a dentista.

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A precariedade é mais evidente nos dentistas que exercem há menos de nove anos, ou seja, os médicos mais jovens PAULO PIMENTA

A resposta dentária no SNS não inclui as próteses e os implantes, que são os tratamentos mais dispendiosos, mas esta equipa faz tudo o que pode no seu pequeno consultório e orgulha-se de ter “muitos casos de sucesso”. “Este ambiente é diferente do do sector privado, mais descontraído. Tentamos sempre perguntar ao utente como tem estado, como estão as doenças, para que a pessoa possa relaxar. Há utentes que na primeira consulta vinham a tremer e depois começam a perder o medo”, diz Andreia Pinto, que trabalha como assistente dentária neste centro de saúde desde Junho de 2020.

Para que o consultório feche o menor número de dias possíveis durante o ano, as duas profissionais vão tirar os “dez dias de ausência” a que estão autorizadas (porque não têm direito a férias) na mesma altura, mais um esforço que estão disponíveis a fazer pelo SNS e pelos seus utentes. “No fim, vale a pena.”

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